A brava xerife do mar que não deixa ninguém entrar no único atol do Brasil
No meio do mar, a cerca de 270 quilômetros da costa do Rio Grande do Norte, existe um lugar absolutamente lindo.
Este aqui, o Atol das Rocas, o único atol do país (um recife de forma circular, que abriga uma espécie de lagoa no meio do oceano) e, também, de todo o Atlântico Sul.
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É o que de mais perto o Brasil tem do Taiti. Seu mar é incrivelmente azul e com uma quantidade extraordinária de seres marinhos. Seja na beleza ou na riqueza da natureza, o Atol das Rocas deixa até qualquer ilha do Caribe no chinelo.
Mas não se anime. Porque, aqui, ninguém pode entrar. Nem mesmo se aproximar. E quem trabalha 24 horas por dia para que isso nunca aconteça é esta mulher: Maurizélia de Brito Silva, ou apenas "Zélia", como ela prefere.
Ninguém conhece esse naco do território brasileiro — com cara de paraíso, mar de aquário e absolutamente ninguém por perto — melhor do que Zélia. E ninguém manda ali mais do que ela.
Em 1991, aos 26 anos, desembarcou ali pela primeira vez, levada pelo pai, então encarregado do extinto IBDF – Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal. Zélia, hoje com 53 anos e chefe da Reserva Biológica do Atol das Rocas, nunca mais fez outra coisa a não ser tomar conta do atol – com unhas e dentes.
Seu rigor e braveza na hora de defender o Atol dos pescadores e invasores em geral lhe rendeu até um apelido: "Xerife do Mar", do qual ela muito se orgulha. Rendeu, também, a admiração de todos os pesquisadores e ambientalistas. Ninguém jamais foi tão dedicado à tarefa de proteger um pedacinho do mar brasileiro do que a Xerife Zélia, que segue na ativa até hoje. Ela não tem planos de se aposentar — e ai de quem fizer algo errado no Atol das Rocas!
"Mexeu no Atol, mexeu comigo. Tenho autorização para usar arma, mas não uso. Prefiro conversar com os infratores. Mas falo grosso"
No começo da sua cruzada solitária para proteger o atol da pesca, Zélia cansou de ser ameaçada pelos pescadores. Cortava redes, mergulhava para soltar os peixes enredados e não se intimidava nem quando os mais agressivos vinham para cima do seu precário bote, às vezes com armas em punho. "Eu morria de medo, porque, se tomasse um tiro ali, no meio do mar, ninguém jamais ficaria sabendo. Mas não afinava nem desistia. Fingia coragem e ia para cima. O atol sempre foi a minha vida", diz.
"Não pode ter mais que cinco pessoas no Atol ao mesmo tempo. E todos têm que ser pesquisadores. Se não, não entra"
Ninguém pode visitar o Atol das Rocas, que fica a mais de 20 horas de barco da capital do Rio Grande do Norte. Mas Zélia vai para lá três ou mais vezes por ano. E, a cada incursão, fica mais de um mês no Atol. No começo, ia sozinha. "Hoje ficou bem mais fácil encarar a solidão. Mas, no começo, eu conversava só com bicho e cheguei a passar fome e sede, quando acabava a água de beber e o gás do fogareiro. Era um sofrimento só. Mas eu nunca me arrependi".
"Nunca comi um peixe tirado do mar do atol. Tem peixe lá que eu acompanho o crescimento há mais de dez anos. Graças a Deus, isso hoje é possível"
Até os pescadores concordam que, se não existisse Zélia, o Atol das Rocas há muito teria deixado de ser o que é até hoje. Ele fica numa posição estratégica de correntes marítimas e é uma espécie de criadouro marinho natural — daí ter virado área de proteção. Os peixes gerados lá abastecem toda a região.
Mas quem for pego pescando nas imediações do atol vai ter que se entender com a Xerife Zélia, que está sempre de plantão. Seja na internet, analisando imagens via satélite, ou encarapitada no alto do farol que há no Atol. Mas invasões, felizmente, não têm acontecido mais.
"Hoje, ninguém mais pesca no Atol. Fui xerife quando foi preciso ser. Não fosse isso, a história teria sido outra"
Zélia é firme e admite que, se não tivesse tido pulso forte desde o começo, a fauna marinha do atol já estaria comprometida. Mas fez isso movida pelo idealismo.
"Um dia, eu decidi que ia cuidar do Atol como se ele fosse meu. Fiz até empréstimo no banco para pagar, do meu bolso, as despesas das viagens. Mas hoje, quando vejo como aumentou a quantidade de peixes, lagostas, tartarugas e tubarões nas piscinas do Atol, vejo como tudo aquilo valeu a pena".
"Quando cheguei ao Atol pela primeira vez, tive certeza de que nunca mais seria a mesma pessoa. Ele é lindo. Mas não é pra todo mundo".
O que Zélia quer dizer é que a vida no pedaço mais exótico – e pouco conhecido – da costa do Brasil é dura. Bem dura. A começar pelo fato de que o Atol das Rocas, embora cercado de mar por todos os lados, não tem água potável. É preciso trazer água doce do continente para beber ou torcer para chover. Banho? Só de água salgada. E banheiro é o próprio mar, até hoje.
"No começo era bem pior", consola-se Zélia. "Vivi quase três anos dentro de uma barraca de camping, enxotando baratas e escorpiões, porque a Reserva não tinha nem sequer uma sede. Hoje, temos até internet e recursos de patrocinadores, como a Fundação SOS Mata Atlântica e o Funbio. Mas, mesmo assim, são poucos os que aguentam ficar lá um mês inteiro, até o barco vir buscar a gente".
"Sempre que eu subia no farol para vigiar os barcos de pesca e via aquela belezura toda lá embaixo ficava com ainda mais gana de expulsá-los dali. Até hoje, a beleza natural do Atol me comove".
Zélia chegou a cursar Ciências Sociais e Biologia, mas não terminou nenhuma das duas faculdades, porque faltava demais às aulas, por causa do Atol. "Acabei me formando em 'atologia"', brinca. O prêmio, para ela o maior de todos, foi ter sido homenageada pelos pesquisadores, que batizaram duas novas espécies encontradas no Atol com o seu nome. "Quando eu não estiver mais aqui, ainda assim algo meu ficará no Atol", diz, orgulhosa.
No Brasil, a dedicação da Xerife do Mar só tem paralelo com a de outra abnegada brasileira, a arqueóloga Niède Guidon, que também tem dedicado sua vida ao estudo de pinturas rupestres no interior do Piauí e ao passado do povo brasileiro – e ambas têm o mesmo comportamento firme e irredutível quando se trata de proteger o território no qual dedicaram a vida inteira.
Não por acaso, ambas foram premiadas. A arqueóloga com uma comenda da Unesco e Zélia com um prêmio dado aos brasileiros que fazem diferença na transformação do mundo.
Nos Estados Unidos, contudo, a história da ambientalista potiguar encontra paralelo em outra heroína do mar, embora em outro sentido.
No final do século 19, a americana Ida Lewis tornou-se não apenas a mais jovem faroleira da História, com apenas 16 anos de idade, como foi a primeira mulher a receber a mais alta condecoração do Congresso Americano, além de ter sido eleita "A Mais Brava Mulher da América", pelos regastes que promoveu no mar, com um simples barco a remo — uma história igualmente extraordinária, que pode ser conferida aqui.
Fotos: Arquivo Pessoal e ICMBio
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