Português dá volta ao mundo com 200 litros de vinho no barco, mas não bebe
Em janeiro de 2019, o velejador português Henrique Afonso, então com 57 anos, partiu da Ilha da Madeira, onde nasceu e sempre viveu, para uma longa viagem pelo mar: dar a volta ao mundo navegando sozinho em seu barco, um pequeno veleiro de nove metros do comprimento.
Hoje, quase dois anos e meio depois, ele acaba de partir de Cabedelo, na Paraíba, para o trecho final da viagem: o retorno à Ilha da Madeira, após contornar todo o planeta, onde pretende chegar só em junho, após mais uma escala nos Açores – uma longa jornada de mais de 50 000 quilômetros no mar.
Mas, bem mais interessante do que a viagem de volta ao mundo do velejador português é o que ele leva a bordo do seu pequeno barco: duas barricas, com 200 litros do famoso vinho produzido na ilha, que ele, desde que partiu, não bebeu uma só gota.
"Durante a viagem, diversas vezes morri de vontade de beber um pouquinho do vinho, mas resisti a tentação", conta Henrique, apelidado de "Pirata" pelos moradores da Ilha Madeira, onde agora o seu retorno é aguardado com orgulho e entusiasmo.
Por que levar tanto vinho?
O objetivo de Henrique, ao passar tanto tempo navegando com tamanha quantidade de vinho a bordo – e sem bebê-lo – é o de reconstituir um fato histórico: o da maturação e envelhecimento do vinho da Ilha da Madeira nos porões das caravelas portuguesas, como era feito na época dos descobrimentos.
Naquela época, barricas de vinho eram embarcadas tanto para o consumo da tripulação quanto para servir de lastro nas caravelas, durante as longas travessias.
Mas, como nem todas as barricas eram consumidas nas viagens, algumas retornavam à ilha. E, ao serem abertas, mostravam uma bebida de sabor diferente, bem mais atraente, após tanto tempo chacoalhando nos abafados porões das naus portuguesas.
Reconstituindo a História
Foi quando os madeirenses descobriram que as longas viagens marítimas, sob intensas variações de temperaturas, faziam muito bem ao não tão excepcional assim vinho da ilha.
Nascia assim o "Vinho da Roda" (porque "rodava" o mundo antes de ser consumido) ou "Torna Viagem" (porque retornava após muito tempo no mar), que trouxe fama mundial ao hoje principal produto de exportação da Ilha da Madeira.
É isso o que o velejador Henrique "Pirata" está prestes a reconstituir agora, cinco séculos depois.
Vinho que não tem preço
Quando retornar à mesma ilha de onde partiu, 27 meses atrás, os 200 litros do vinho que o velejador leva no seu barco desde então farão parte de uma "Reserva Especial", com, segundo ele, "valor histórico e incalculável".
"Depois de dar a volta ao mundo, este será um vinho único, que não tem preço", avalia o velejador português, que navega com duas grandes barricas dentro do barco – sem beber uma gota do que há nelas.
Quanto mais atrasar, melhor
Ao partir da Ilha da Madeira, Henrique não tinha um roteiro definido – sabia apenas que queria dar a volta ao mundo, com todo aquele vinho.
"Eu não tinha pressa, nem data para voltar. Estimava que a viagem levaria uns dois anos, três talvez, porque quanto mais ela durasse, melhor estaria o vinho na volta. Mas o que eu não contava que que, no meio da viagem, viria a pandemia. E aí complicou tudo", conta o velejador, que está sentido o problema até hoje.
Pego pela pandemia
Com a pandemia e o consequente fechamento dos portos do mundo inteiro aos barcos estrangeiros, Henrique teve que ficar seis meses parado na ilha do Timor Leste, uma antiga colônia portuguesa na Ásia.
Ele até poderia partir, mas, depois, não teria como parar em lugar algum.
O jeito foi esperar que algumas fronteiras voltassem a abrir para seguir viagem, o que, até agora, só aconteceu em alguns países. E o Brasil não é um deles.
Proibido de descer no Brasil
No Brasil, onde Henrique chegou um mês atrás, ele também não pode desembarcar.
"Cheguei no Recife, no final de março, mas fui mandado embora. Daí, fui para a Paraíba, onde aconteceu o mesmo. Eu queria desembarcar para visitar minha filha, que mora em Florianópolis, mas não deixaram. Então, resolvi antecipar a volta para casa", diz o velejador, que partiu ontem de Cabedelo, para uma travessia de um mês até os Açores, e, de lá, para a Ilha da Madeira, onde, enfim, completará a circum-navegação do planeta – com as duas barricas de vinho intocadas na cabine.
20 países no roteiro
Na sua longa viagem, Henrique "Pirata" (que sempre usa bandanas e, fazendo jus ao apelido, um par de brincos de argolas nas orelhas) já visitou 20 países e, apesar das restrições causadas pela pandemia, foi bem recebido em todos eles –graças, em parte, a peculiar carga que transportava, que sempre despertava curiosidade nas pessoas.
"Recebi muitas visitas de madeirenses e cônsules portugueses por onde passei, porque eles sempre queriam ver as barricas de vinho no barco", recorda o velejador, que, no entanto, também passou alguns perrengues na viagem até aqui.
Quase preso por contrabando
Nas Ilhas Samoa, Henrique quase foi preso, por contrabando, por conta do próprio vinho. "Eu não declarei as barricas na chegada, porque, como elas estão lacradas desde que parti da Ilha da Madeira, para que todos tenham certeza de que o vinho voltará intacto, achei desnecessário. Mas não era, e deu uma confusão danada".
Já, na África do Sul, o problema foi outro: uma pavorosa tempestade no mar, com uma intensa chuva de raios, que quase fez o português romper o lacre e beber um pouco do vinho, como seu último desejo – porque achou que ia morrer.
"Respirei fundo e compensei a vontade de beber o vinho com uma cerveja, até porque não havia nada que eu pudesse fazer, no meio daquela tormenta. Felizmente, a tempestade passou. Aliás, tempestades sempre passam", analisa o velejador.
Viaja com pouco dinheiro
Para realizar o sonho de dar a volta ao mundo velejando, Henrique, que nada tem de rico, muito pelo contrário, sempre contou com a solidariedade das pessoas, porque viaja com pouquíssimo dinheiro.
"Vivo com cerca de pouco mais de R$ 3 000 por mês, que equivalem aos 500 euros que recebo do aluguel de quartos na minha casa, na Ilha da Madeira. Mas encontrei madeirenses em todos os cantos do mundo, e eles me ajudaram muito. Além de ficarem orgulhosos do vinho que eu carrego, porque ele é o símbolo da ilha. Como a caipirinha para o Brasil", explica.
Começou como uma brincadeira
A decisão de Henrique de rodear o planeta carregando 200 litros de vinho que não poderiam ser bebidos – e que voltarão para o mesmo lugar de onde partiram – começou como uma brincadeira entre amigos, que duvidaram que ele faria isso.
Henrique aceitou o desafio e conseguiu que uma adega da ilha lhe fornecesse o vinho e também apoiasse o projeto, que nem todo mundo acreditava que daria certo.
Mas, agora, com o velejador já na reta final da viagem, os moradores da ilha já começam a se preparar para a volta triunfal do "Pirata", primeiro velejador madeirense a dar a volta ao mundo navegando.
E com uma carga, para eles, pra lá de emblemática: a nova versão do "Vinho da Roda".
Uma galinha como única companhia
Nunca se teve notícia de alguém que tenha contornado todo o planeta arrastando duas barricas de vinho, apenas para que a bebida amadurecesse ao longo do caminho.
Mas, outros velejadores já transportaram coisas igualmente inusitadas em longas travessias com seus barcos.
Um dos casos mais curiosos foi o francês Guirec Soudée, que, cinco anos atrás, também deu a volta ao mundo velejando com uma companhia inusitada no seu barco: uma galinha, que ele batizou de Monique.
E que, entre outras vantagens, "fornecia ovos frescos todos os dias".
Tal qual o vinho do português Henrique, a galinha do francês também terminou a viagem intacta – possivelmente, a única galinha da História que passou tanto tempo a bordo de um barco sem acabar na panela.
E, até hoje, a ave acompanha o francês em suas andanças mar afora – clique aqui e conheça essa outra interessante história.
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