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Histórias do Mar

Gigantes dos mares fazem sua última viagem. Destino: a destruição

Jorge de Souza

09/01/2021 04h00

Chris McGrath/Getty Images

A cena é tão bizarra quanto dramática. Encalhados, lado a lado, na praia de Aliaga, na Turquia, diante de um dos maiores estaleiros de desmanche de navios do mundo – e misturados com velhos e enferrujados cargueiros -, cinco branquíssimos transatlânticos, ainda com piscinas, tobogãs e quadras esportivas à mostra, aguardam o momento em que começarão a ser desmanchados, cortados e picotados, até que desapareçam por completo, o que não levará mais do que seis meses para acontecer.

E este chocante cenário, que retrata bem a crise mundial gerada pela pandemia da covid-19 no mercado de cruzeiros marítimos, não está acontecendo só ali.

Chegou mais um navio

Na imunda praia de Alang, na Índia, considerada o mais intenso polo de demolição de embarcações do planeta – embora opere com métodos medievais e operários quase escravizados -, a situação é idêntica.

Ali, outros quatro outrora garbosos transatlânticos de cruzeiros aguardam o mesmo destino, e o momento em que começarão a serem transformados em simples pilhas de placas de aço.

Esta semana, chegou mais um navio para ser demolido em Alang (confira o vídeo).

A vítima, dessa vez, é um velho conhecido dos brasileiros: o ex-transatlântico Ocean Dream, que no Brasil fez muito sucesso nas temporadas de cruzeiros do início dos anos 2000, sob o antigo nome de Costa Tropicale.

Fotos: Divulgação

O Costa Tropicale, por sua vez, sucedeu ao Carnival Tropicale, que praticamente popularizou os cruzeiros no Caribe – e, igualmente, sempre repletos de turistas brasileiros.

Ainda podia navegar, mas…

Para quem, no passado, teve a oportunidade de fazer um divertido cruzeiro no Tropicale, com seus 200 metros de comprimento, a imagem dele sendo propositalmente arremessado naquela praia da Índia, na semana passada, onde irá desaparecer nas mãos de operários formiguinhas, que devoram navios inteiros de maneira impressionante, não deixa de ser triste.

Até porque, embora já somasse alguns bons anos de vida, como os demais navios que estão sendo levados para desmanches, o ex-Tropicale ainda estava em plenas condições de navegar.

Mas a crise decretou a morte prematura de todos eles.

Segundo a empresa inglesa Cruise & Maritime Voyages, desde o início da pandemia, 34 navios de cruzeiros já foram vendidos ou enviados para demolição em locais como Aliaga e Alang.

Recém-reformados, mas agora desmanchados

Só a Carnival, maior conglomerado de empresas de cruzeiros do mundo, já anunciou que 13 dos seus transatlânticos estão sendo vendidos, ou serão desmanchados, caso não surjam compradores interessados.

Entre eles, os até pouco tempo atrás festejados Carnival Fantasy, Carnival Imagination e Carnival Inspiration, lançados em 1990, 1995 e 1996, respectivamente, todos recém-reformados e com capacidade para mais de 2000 passageiros (além de mordomias como spas, piscinas aquecidas, restaurantes variados e até minicampos de golfe), que aparecem na primeira foto deste post, já encalhados, à espera do desmanche.

Além disso, algumas empresas de cruzeiros marítimos, como a espanhola Pullmantur, dona de outro navio bastante conhecido entre os brasileiros, o Soberano, que também navegou muito por aqui e, agora, está sendo igualmente demolido naquela praia da Turquia, simplesmente faliram.

Corte de custos

O motivo de tudo isso é a interrupção mundial dos cruzeiros marítimos, um dos setores mais diretamente afetados pela pandemia.

Entre continuar a somar prejuízos ou vender navios ainda operantes como simples ferro-velho, as empresas estão optando pela segunda alternativa.

A ordem é eliminar custos e, neste caso, a eutanásia prematura de transatlânticos que ainda poderiam navegar tem sido a única saída.

Única saída são novos navios

Em alguns casos, como o da própria Carnival, é, também, uma maneira de tentar viabilizar a estratégia de dar a volta por cima, com o lançamento de novos – ainda mais faraônicos – navios, tão logo os países autorizem a volta dos cruzeiros marítimos.

Se tudo der certo, e a pandemia começar a ser controlada com a chegada das vacinas, a Carnival pretende lançar, já em abril, o seu mais novo transatlântico: o Mardi Gras, que fará cruzeiros pelo Caribe e terá até uma inédita montanha russa a bordo.

A mesma estratégia será adotada pela MSC, uma das duas empresas que operam na costa brasileira, que, este ano, mesmo com a pandemia ainda não controlada, já avisou que lançará dois novos navios.

Para as empresas do setor, oferecer novidades – e cada vez mais surpreendentes – é a melhor maneira de vencer a resistência dos passageiros a voltar a embarcar em um navio de cruzeiro.

Como tudo começou

A crise no setor começou em 4 de fevereiro do ano passado, quando o transatlântico Diamond Princess virou notícia no mundo inteiro ao ficar dias retido no porto de Yokohama, no Japão, mas sem poder desembarcar seus passageiros, por suspeita de contaminação pela covid-19 a bordo – o que, de fato, se confirmou.

Das 3700 pessoas que haviam no navio, mais de 700 foram contaminadas, em menos de cinco dias.

Depois disso, os cruzeiros marítimos caíram em desgraça e todos os cruzeiros foram cancelados. No mundo inteiro.

Cancelados também no Brasil

No Brasil, a temporada de cruzeiros deste verão, que deveria ter começado em novembro, foi, recentemente, também cancelada de vez.

Mas, por enquanto, nenhuma das duas empresas que operam cruzeiros marítimos no Brasil, a Costa e a MSC, tomaram qualquer decisão sobre vender ou eliminar seus navios. Ao contrário.

"Nossa posição é de crescimento e nenhum dos nossos navios está destinado à venda ou ao desmanche", avisou a MSC Cruzeiros, em um comunicado.

Navio com alma brasileira

O Ocean Dream, ex Costa Tropicale, atuou no Brasil em cinco temporadas, fazendo cruzeiros tanto para o Uruguai e Argentina quanto, depois, já sob o novo nome, também no Nordeste, numa série de cruzeiros para a ilha de Fernando de Noronha.

Para os brasileiros, as boas lembranças trazidas por aquele navio começaram ainda na sua chegada ao país, em 2001, quando ele foi "batizado" numa cerimônia carnavalesca em Salvador, ocasião em que recebeu uma gigantesca fita de Nosso Senhor do Bonfim, igual à dada aos turistas que visitam a capital baiana, em volta de sua chaminé.

"O Costa Tropicale é um navio italiano com alma brasileira", proclamou, na ocasião, o capitão do navio, o italiano Vito Chiarini.

Naquele ano, os brasileiros lotaram os cruzeiros do Costa Tropicale como nunca antes havia acontecido. E o mesmo aconteceu nos anos seguintes.

Hoje, estes mesmos antigos passageiros devem estar um tanto amargurados com o fim do navio, que, não fosse a pandemia, ainda poderia estar navegando por aí.

Como todos esses abaixo

Alguns transatlânticos que vão virar sucata

Carnival Imagination Nem a grande reforma pelo qual este navio passou, apenas quatro anos atrás, o salvou do desmanche. Seu último cruzeiro foi em abril deste ano, quando, após desembarcar, um dos seus 2634 passageiros foi diagnosticado com covid-19, o que deixou todos os demais em pânico. Nunca mais voltou a navegar.

Carnival Inspiration – Após anos levando turistas para passear pelo Caribe, este navio, com capacidade para mais de 2000 passageiros, fez sua última viagem no início do ano, desta vez sem passageiros, rumo à Turquia, onde já está sendo desmantelado.

Carnival Fantasy  – Era o navio mais antigo da frota da Carnival e, por isso mesmo, inevitavelmente condenado a virar uma pilha de placas de aço. Com a crise, não teve escapatória.

MS Sovereign – Quando foi lançado, em 1988, sob o antigo nome Sovereign of the Sea, era o maior navio de cruzeiros do mundo – e o primeiro a ter atrium central com elevadores de vidro. Com doze andares e capacidade para 2733 passageiros, foi sensação nas temporadas brasileiras, no final da década de 2000. Mas, depois, foi vendido para uma empresa que faliu e, agora, será transformado em sucata.

MS Monarch – Sob o nome Monarch of the Seas, fez parte da frota da Royal Caribean, uma das mais famosas do mundo. Com capacidade para 2733 passageiros, ficou particularmente conhecido no final da década de 2000, quando passou a ser comandado pela primeira mulher a ocupar o posto de capitão em um navio de cruzeiro. Mas, depois, também foi vendido para a Pullmantur, que faliu durante a pandemia. Se destino também foi o desmanche.

MV Horizon – Outro navio que não escapou das consequências da falência da Pullmantur. Atualmente, aguarda o momento de começar a ser desmanchado em Aliaga, após passar uma temporada no porto de Atenas, na Grécia, quando tudo o que havia de valor nele foi retirado.

Costa Victoria – Não fosse a pandemia, este transatlântico, com capacidade para 1900 passageiros, ainda poderia ser usado por mais alguns bons anos. Mas a crise decretou o seu fim precoce – pelo menos como navio. Vendido em julho deste ano para virar hotel flutuante na Itália, seu futuro, contudo, ainda é incerto. O mais provável é que acabe sendo demolido.

Pacific Dawn – Ex-Regal Princess, nome sob o qual navegou durante muitos anos no Caribe, também foi vendido, no início desse ano, a uma empresa do Panamá, que o queria transformar numa espécie de condomínio flutuante, habitado, sobretudo, por adeptos das criptomoedas. Mas o audacioso plano também não deu certo e o navio, já rebatizado Satoshi, tomou o rumo do desmanche em Alang, onde já se encontra.

Grand Celebration – Antigo Carnival Celebration, com capacidade para 1400 passageiros e 600 tripulantes, já estava em vias de ser aposentado, mas a falta de compradores interessados, já que a oferta de navios maiores e mais modernos aumentou barbaramente este ano, o fez ser levado diretamente para o desmanche.

Ocean Dream – O ex-Carnival Tropicale e, depois, Costa Tropicale, não resistiu a falência da sua última empresa e fez, na semana passada, a sua última viagem – rumo ao desmanche. É a mais recente vítima da onda de demolições de transatlânticos, causada pela pandemia.

Pior desmanche do mundo

NGO Shipbreaking Platform

Para tornar o fim do navio que os brasileiros adoravam ainda mais melancólico, o seu desmantelamento será feito no mais infame desmanche de navios do mundo, na praia de Alang, na Índia, que, por isso mesmo, é conhecida como o maior cemitério de navios da planeta. Clique aqui para saber por quê.

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.