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Histórias do Mar

O que há de real na história do homem que construiu uma ilha e virou filme

Jorge de Souza

19/12/2020 04h00

Desde que estreou na Netflix, na semana passada, a bem-humorada história de um engenheiro italiano que decide "construir" uma ilha e declará-la uma nação independente, vem fazendo sucesso e despertando certa curiosidade nos espectadores, já que, como o próprio filme avisa, foi "baseado em um fato real" – ainda que, num primeiro momento, difícil de acreditar.

Mas, fica a dúvida: o que há de verdade no delicioso "A Incrível História da Ilha das Rosas", que narra a saga do genial engenheiro bolonhês Giorgio Rosa, "criador" da tal ilha artificial, que, por muito pouco, não virou uma micro-nação independente na costa da Itália?

A resposta é: quase tudo.

"85% do que o filme mostra aconteceu de fato, e apenas 15% foi a alterado ou incluído na história original, porque ela já era, por si só, fantástica", diz o produtor do filme, Matteo Rovere.

Não parecia ser real. Mas era

"Quando li o script pela primeira vez, pensei: ´isso não pode ser real`. Mas era", completa a diretora de filmes internacionais da Netflix, Teresa Moneo.

É justamente essa sensação que os espectadores vão tendo ao longo do filme, dada a peculiaridade da história – que, no entanto, sob o ponto de vista técnico, prático e político, sempre foi perfeitamente legal e exequível.

Tanto que a tal ilha que almejava virar uma nação independente, sob o comando do seu idealizador (que, ao inaugurá-la, em junho de 1968, autoproclamou-se "presidente"), existiu de verdade.

Esta é o primeiro fato autêntico desta curiosa história, que, para quem ainda não assistiu ao filme, pode ser resumida assim.

Para conhecer esta história

No final da década de 1960, o criativo engenheiro Giorgio Rosa, no filme interpretado pelo ator Elio Germano, decide construir uma plataforma marítima, fincá-la a míseros metros além do limite do mar territorial italiano (portanto, já em "águas internacionais", que, em tese, não pertencem a país algum), e proclamá-la uma nação independente, livre de regras e burocracias.

Reprodução: Gambalunga Civic Library/RIMINI

Logo, a exótica "ilha", feita de tijolos e concreto sobre pilares de aço, que, na sua essência, traduzia o mais fiel significado da expressão de liberdade, virou uma espécie de Meca para os jovens daqueles acalorados anos de rebeldia social, e passou a ter cada vez mais movimento (além de pedidos de "cidadania"), o que passou a incomodar demais o governo italiano, que decidiu agir com inesperado rigor.

Reprodução: Arquivo Pessoal Lorenzo Rosa

Atenção: contém spoiler!

Para não estragar o prazer de quem ainda não viu o filme (embora, por ser um caso real, quem o conhece sabe bem como tudo terminou), convém não ir além desse ponto – além de alertar os que seguirem adiante com esta leitura de que parte do desfecho desta história será revelado.

Mas, se este não for o seu caso (ou se preferir assistir ao filme já sabendo como separar a ficção da realidade, o que, inclusive, valoriza ainda mais a história real), é interessante saber que:

Detalhes verdadeiros do filme

Reprodução: Arquivo Pessoal Lorenzo Rosa

  • Todos os personagens principais (Rosa e meia dúzia de companheiros) existiram de fato, embora os nomes de alguns deles tenham sido alterados.
  • Na primeira noite que o engenheiro passou na ilha que havia construído, houve mesmo uma fortíssima tempestade, que quase o arremessou ao mar. Qualquer um teria desistido do sonho na hora. Mas não ele. Perto dos gigantescos problemas gerados pela criação de uma ilha-nação à revelia do governo, aquele contratempo climático pouco significava.
  • A perfuração do fundo do mar, com uma sonda, para captar água doce para a "ilha", aconteceu de fato. E foi bem-sucedida. Mas, o que o filme não conta é que, secretamente, Rosa tinha esperanças de conseguir extrair, também, petróleo, o que tornaria sua micro-nação fabulosamente rica.
  • Para contar a história da Ilha das Rosas, como a criação de Rosa foi batizada, o diretor italiano Sydney Sibilia optou por construir uma réplica real da plataforma, inclusive no tamanho, de 400 metros quadrados, e filmar dentro de uma gigantesca piscina de mar represado, na ilha de Malta. Embora, no local, a profundidade fosse bem mais aceitável do que os 40 metros de profundidade de onde a ilha real foi assentada, as dificuldades nas gravações sobre o mar foram enormes – quase como uma reconstrução do sonho do engenheiro italiano.
  • Além de ter (atenção: spoiler!) sua ilha destruída pelo governo da Itália, Rosa ainda teve que pagar as despesas da própria ação que a explodiu, o que ele fez, durante anos, com parte do salário de professor, profissão que passou a exercer ao perder a ilha.

O que o filme não conta

Porém, ao contrário do que o filme mostra:

Reprodução: Arquivo Pessoal Lorenzo Rosa

  • A construção da plataforma não levou apenas "meses" e sim dez anos, já que foi feita com recursos próprios e, desde o início, enfrentou resistência das autoridades marítimas italianas. Rosa começou a construí-la em 1958 e só terminou em 1968, quando autoproclamou a Ilha das Rosas como uma "nação independente", a 11 quilômetros da costa de Rimini, na Itália.
  • Os pilares que sustentavam a plataforma não foram preenchidos com água do mar, o que seria engenhoso demais mesmo para alguém tão criativo quanto Rosa, mas sim com o habitual concreto.
  • O projeto completo da ilha previa uma espécie de edifício sobre o mar, com cinco andares. Mas apenas metade do primeiro foi feito e jamais terminado. Até porque, após entrar em atividade, a ilha-nação existiu durante apenas 55 dias.
  • Apesar dos seus ideais de "completa independência e liberdade", Rosa nunca negou que sua ilha desempenharia, também, papel comercial e turístico, gerando dinheiro para os envolvidos – razão pela qual se resumia a um bar, um pequeno restaurante e uma lojinha de souvenires – que, por estarem fora da jurisdição da Itália, tampouco pagavam impostos.

Reprodução: Arquivo Pessoal Lorenzo Rosa

Giorgio Rosa e sua companheira, Gabriella, já estavam casados quando a ilha foi construída, e jamais se separaram. Não houve, portanto, nenhuma disputa amorosa, nem a romântica reconciliação do casal graças à ilha.

  • A Ilha das Rosas não foi destruída numa só investida da Marinha Italiana, como o filme mostra. Ao contrário, foi preciso duas sequências de explosivos, ao longo de dois dias, para, ainda assim, apenas danificar a estrutura da plataforma – o que não deixou de ser um reconhecimento ao perfeito trabalho feito pelo engenheiro. O colapso final da obra foi provocado por uma tempestade, não pelos canhões do navio. Mesmo assim, durante meses, os restos da plataforma ficaram visíveis na superfície do Mar Adriático.
  • Por fim, o final do filme foi igualmente romanceado. Os principais protagonistas daquela história bizarra não estavam presentes quando a Marinha Italiana atacou a ilha, tampouco houve ação alguma de esquiadores tentando impedir os disparos.

Reprodução: Arquivo Pessoal Lorenzo Rosa

Quando a ilha foi destruída, não havia mais nada, nem ninguém nela.

Só ficou com um tijolo

Quarenta anos depois, mergulhadores curiosos vasculharam o fundo do mar da região e encontraram os restos da Ilha das Rosas, de onde extraíram alguns fragmentos.

Um deles, um simples tijolo, foi dado de presente ao próprio Giorgio Rosa, com uma curiosa dedicatória: "Um pedacinho de um sonho para um grande sonhador".

Giorgio Rosa morreu em 2017, aos 92 anos, ainda um tanto amargurado com a destruição da sua nação utópica.

Ele só gostava de falar sobre o assunto se fosse para explicar as soluções de engenharia que havia aplicado para resolver os muitos desafios de erguer uma plataforma no mar aberto.

E, por isso, deu autorização para o filme que agora foi lançado.

Não foi o primeiro caso

Embora bizarra, a experiência do italiano de tentar implantar uma micro-nação independente em uma plataforma sobre o mar não foi inédita.

Na mesma época, outro excêntrico aventureiro, o inglês Roy Bates, fizera o mesmo em uma antiga fortaleza, construída ilegalmente pela Inglaterra fora de seu mar territorial, durante a Segunda Guerra Mundial, e também o declarou como sendo um "país independente", que batizou de Sealand, visando ali implantar uma rádio pirata e ganhar algum dinheiro com isso.

Foto: Saland

E, ao contrário da ilha-nação idealizada pelo italiano Rosa, Sealand existe até hoje, com bandeira, hino e passaporte, embora jamais tenha sido reconhecida por país algum – clique aqui para conhecer esta outra incrível história, que, ao contrário da Ilha das Rosas, ainda não virou filme.

Mas, um dia, também virará.

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.