Topo

Histórias do Mar

Há 40 anos, ela topou viver em uma ilha deserta com um estranho

Jorge de Souza

12/12/2020 04h00

Quarenta anos atrás, em 1980, o jornalista, escritor e, acima de tudo, excêntrico aventureiro inglês Gerald Kingsland, na época com 49 anos de idade, publicou um anúncio de jornal no qual buscava "uma ´esposa` para passar um ano numa ilha deserta com ele".

Por mais absurda que a proposta parecesse, a jovem inglesa Lucy Irvine respondeu ao anúncio. E aceitou a proposta.

"Na entrevista, quando Gerald me perguntou o que eu gostaria de levar para uma ilha deserta, eu respondi: chá. Bastante chá".

Para ela, que já havia feito um pouco de tudo na vida, apesar dos seus parcos 24 anos de idade (abandonara a escola aos 13, viajara sozinha de carona pela Europa aos 16, e trabalhara em qualquer coisa que pudesse render algum dinheiro – tratadora de macacos em zoológico, cuidadora de cadeirantes, padeira, modelo fotográfico, assistente de escultor de lápides de cemitérios, caseira, porteira, pintora de barcos, garçonete e, por fim, atendente da Inland Revenue, emprego que tinha quando viu o tal anúncio), aquela era uma oportunidade de viver uma experiência única, de simplificar a vida (desejo que alimentava desde que conhecera uma comunidade de pescadores turcos, que subsistia apenas dos peixes que pescavam) e – quem sabe? – até encontrar o homem da sua vida.

Gerald, que pregava querer "viver uma experiência de auto-suficiência e isolamento, visando escrever um livro", feito uma espécie de Robinson Crusoé moderno, aceitou na hora a jovem candidata. A única, por sinal.

O paraíso que virou purgatório

A ilha escolhida por ele para aquela insólita experiência foi um ilhote no Estreito de Torres, entre a Austrália e Papua Nova Guiné, chamado Tuin, que, pelas poucas informações que tinha, parecia ser um paraíso tropical.

Mas o que nem Gerald nem Lucy sabiam era que, para ocuparem a ilha, que pertencia à Austrália, teriam, primeiro, que se casar, porque assim impusera o governo australiano.

Foi o primeiro contratempo.

"Nós não sabíamos que, para poder ficar na ilha, teríamos que casar. Eu mal o conhecia. Mas casamos mesmo assim".

Dias depois, pegarem carona em um barco que os deixou naquela ilha deserta, que jamais fora habitada.

Embora o objetivo fosse apenas "sobreviver, feito náufragos", como Gerald (que Lucy passou a chamar apenas de "G") definiu no seu destrambelhado projeto, a empreitada logo se revelou um completo desastre.

A começar pela falta de planejamento e bom senso.

Quase nada para comer

Com o que sobrou dos poucos recursos financeiros que os dois tinham, após comprarem passagens só de ida para a Austrália, Gerald e Lucy separaram alguns mantimentos para levar para a ilha.

Basicamente, um saco de chá, outro de trigo, dois de frutas secas, uma caixa de macarrão, quatro quilos de arroz, dois de feijão, um litro de óleo, um quilo de sal, outro de aveia e algumas sementes – praticamente nada para quem pretendia passar um ano inteiro numa ilha deserta.

Eles contavam que lá conseguiriam pescar, plantar e, eventualmente, até caçar, caso houvesse o que capturar.

Mas a ilha se mostrou bem mais inóspita do que parecia.

"Assim que pisamos na ilha, tirei toda a roupa. Não havia porque andar vestida num lugar onde só havíamos nós dois. Mas, em seguida, vesti tudo de novo, por causa dos mosquitos"

Aranhas e tubarões

A ilha tinha uma longa praia sem nenhuma viva alma por perto (só algumas comunidades de pescadores nas ilhas próximas), era revestida de arbustos espinhosos, com apenas um ou outro coqueiro, e repleta de aranhas, iguanas e outros seres não comestíveis e nada agradáveis.

No mar, além de pequenos tubarões rondando sempre perto da praia, também havia o risco de crocodilos de água salgada, animais comuns naquela parte da Austrália, que não só aterrorizavam o casal, como dizimavam os peixes da ilha, deixando bem pouco para eles pescarem.

Além disso, nenhum dos dois tinha experiência em sobrevivência, tampouco habilidades naturais para encontrar comida na natureza.

E, para completar o cenário desanimador, a única fonte de água doce da ilha, fundamental para a sobrevivência dos dois e que Gerald garantira que havia ao fazer a proposta a Lucy, secou logo após a chegada do casal, por conta de uma seca fenomenal, que também impediu que as sementes que eles levaram germinassem.

Só peixes e cocos

Com o fim dos poucos mantimentos que tinham, Lucy e Gerald passaram a viver apenas de peixes e cocos, quando conseguiam capturar um ou outro, já que não sabiam sequer subir em coqueiros.

Eventualmente, encontravam ovos de tartarugas enterrados na areia da praia e os devoravam ainda crus, pois também era preciso poupar os poucos recursos que tinham para fazer fogo.

"Fui para a ilha em busca da simplicidade da vida. Não de fama. Mas meu livro acabou indo parar no cinema".

Viveram feito cão e gato

A experiência logo se revelou muito distante do sonho dourado de uma vida feito Adão e Eva no Paraíso.

E o relacionamento entre os dois começou a deteriorar na mesma proporção em que aumentava a escassez de conforto, água e comida.

Gerald (cujo sobrenome, curiosamente, era Kingsland – algo como "Rei da Terra") revelou-se um homem dominador, o que Lucy jamais aceitou.

Não demorou muito e eles passaram a viver feito cão e gato na pequena ilha habitada só pelos dois.

"Após um tempo, apesar das dificuldades, me apaixonei pela ilha. Bem mais do que pelo meu companheiro de aventura".

Desidratação e desnutrição

Como Lucy e Gerald também não tiveram a sensatez de pedir que alguém fosse até a ilha de tempos em tempos, para saber se estava tudo bem, rapidamente passaram a viver os horrores da desnutrição.

Passavam os dias buscando incessantemente água e comida, mas só de vez em quando conseguiam capturar um peixe, com uma espécie de arpão primitivo, feito de madeira.

"Eu passava os dias pensando em como conseguir água e comida. Um dos momentos mais felizes, foi quando consegui capturar meu primeiro filhote de tubarão, na praia".

Nada, porém, aliviava a sede. Quase nunca chovia e o líquido do interior dos poucos cocos que conseguiam derrubar dos coqueiros não era o bastante.

Sobreviver passou a ser o único objetivo do casal.

Nisso, o experimento de Gerald era um sucesso: eles haviam mesmo se transformado em náufragos, por pura opção.

"Eu ficava tão empenhada em pescar, para me manter viva, que não tinha tempo para pensar no risco real de morrer de fome".

Não tinham barco para fugir

Mesmo assim, no começo, nenhum dos dois pensou em partir da ilha.

Nem teriam como, porque tampouco tinham um barco para isso.

Mas, com o passar do tempo, Gerald foi esmorecendo e coube a Lucy, que, apesar dos pesares, começou a gostar da ilha (mas não propriamente da vida que levava lá), manter a firme decisão de passarem um ano isolados, o que, de fato, fizeram, entre maio de 1981 e junho de 1982.

Mas não exatamente do jeito que haviam imaginado.

13 quilos mais magra

Faltando alguns meses para terminar o prazo, com Lucy já 13 quilos mais magra e os dois padecendo de fome crônica, a ilha começou a ser visitada esporadicamente por nativos da região, atraídos pela curiosidade de ver o que aqueles dois malucos estavam fazendo naquela ilhota deserta.

Logo, os visitantes ficaram sabendo que Gerald tinha certa habilidade para consertar motores, o que fez com que alguns pescadores com problemas mecânicos em seus barcos passassem a chegar à ilha, em busca de ajuda.

Não demorou, e um deles ofereceu uma casa para Gerald abrir uma oficina na ilha onde ele vivia, e o inglês aceitou na hora.

Mas, pressionado por Lucy, sob a condição de, primeiro, completarem a experiência de passar um ano inteiro na ilha.

Quando, porém, o prazo terminou, ambos partiram rapidamente. E em rumos opostos.

Gerald virou mecânico na vizinha ilha de Badu, onde, no entanto, ficou pouco tempo.

"Logo após sairmos da ilha, eu e Gerald nos divorciamos. Foi um divórcio tranquilo. Até porque não havia nada a ser dividido. Viramos amigos".

Virou livro e filme

Não demorou e Gerald voltou a perambular pelo mundo.  Após o divórcio de Lucy (concedido depois que ele lhe enviou uma carta contando que havia engravidado uma moça de 19 anos de idade e precisava se casar com ela), casou-se mais duas vezes (no total, o inglês teve cinco casamentos e nove filhos), antes de morrer, de ataque cardíaco, aos 70 anos de idade.

Já Lucy voltou para a Inglaterra, onde transformou a sua bizarra experiência em um livro chamado "Castaway" (Náufraga, em português), que acabou virando filme de sucesso.

"Meu erro foi ter me apaixonado pela proposta de uma ilha deserta, mas não por quem me levou para lá", escreveu ela na obra, que, mais tarde, teve duas continuações – uma delas, dedicada à sua segunda experiência em uma ilha praticamente deserta, nas Ilhas Salomão, seis anos depois, mas, desta vez, na companhia de dois dos três filhos que teve.

"Foi a melhor escola que eles tiveram", disse a inglesa, ao retornar a Inglaterra e se isolar em uma ilha da Escócia.

"A experiência na ilha mudou radicalmente meus valores. Um copo de água passou a ser coisa mais preciosa da vida"

Hoje, cuida de animais

Hoje, após ter vencido um câncer, Lucy vive cercada dos animais que recolhe nas ruas, através da fundação que criou (a Lucy Irvine Foundation Europe, cujas iniciais, LIFE, significam "Vida", em português), e mora em um velho motorhome, no quintal de sua antiga casa, que pegou fogo, numa esquecida área rural da Bulgária.

"A experiência na ilha me ensinou a viver com pouco", resume a agora sexagenária aventureira, que não foi a primeira pessoa a viver numa ilha deserta por pura opção.

Dez anos antes, o neozelandês Tom Neale fez o mesmo, e passou 15 anos sozinho em outra ilha do Pacífico Sul, tornando-se uma espécie de celebridade mundial (clique aqui para conhecer esta outra interessante história).

Lucy, no entanto, foi a primeira pessoa que se tem notícia a optar por ir para uma ilha deserta na companhia de um quase estranho – e que se revelaria bem mais irresponsável do que ela imaginava.

Mas ela é grata por tudo.

"A experiência na ilha me ensinou a dar o real valor à vida".

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.