Casal que fugiu do Vietnã e salvo no mar por um herói brasileiro vive em SP
Pouco mais de 40 anos atrás, a crise deixada pela guerra do Vietnã, a subida ao poder do comunismo norte-vietnamita e a falta geral de perspectiva (e comida), levou o então jovem casal de namorados Vo Van Phuog e Nguyen Thi Kim Dung a tomar uma decisão desesperada.
Eles entraram em um pequeno barco, junto com mais 22 pessoas (incluindo crianças e um bebê de apenas nove meses de vida), e avançaram mar adentro, para tentar fugir do país e sem saber para onde ir no barco precário e sem água, nem comida.
O objetivo era apenas avançar até o mar aberto, driblando a polícia vietnamita, que tentava impedir a fuga de desertores do regime, e, uma vez lá, torcer para que algum navio estrangeiro os resgatassem, então único meio de fugir do então caótico país que deixavam para trás.
Nunca tinham ouvido falar do Brasil
O sonho do pescador Phuog e da ambulante Nguyen, ambos com 20 anos de idade, era ir para os Estados Unidos e por lá ficar. Do Brasil, nunca tinham ouvido falar.
Mas, quis o destino que o único navio que se dispôs a parar e socorrer aquelas 24 pessoas à deriva no mar fosse o petroleiro brasileiro José Bonifácio. O capitão Charles França de Araújo e Silva, que comandava a embarcação, se recusou a ignorar o apelo humanitário do casal Phuog e Nguyen e seus companheiros -já então há três dias e quatro noites no mar, sem comer nem beber – apesar das implicações que isso traria.
Uma delas é que, dali em diante, o capitão França se tornaria responsável por aquele grupo de pobres coitados, mais numerosos do que a própria tripulação do navio.
Outra, bem mais complexa, é que isso obrigaria o Brasil a dar asilo a todos eles, porque, pelas regras então vigentes, o país que resgatasse refugiados se tornaria, automaticamente, responsável por eles.
Mesmo assim, o comandante brasileiro, não pensou duas vezes: deu ordens para o navio dar meia-volta e, após uma manobra extremamente complexa, resgatou todos os vietnamitas de uma morte certa.
Até porque, um furacão se aproximava e as chances de sobrevivência daquelas pessoas naquele barquinho eram praticamente nulas.
Sem resgate, morreriam
Tão difícil quanto a decisão do comandante brasileiro foi a manobra do gigantesco navio para resgatar o grupo no mar. Isso porque qualquer movimento errado destruiria o próprio barco.
A solução foi ficar dando voltas em torno dos refugiados, até que a velocidade do navio diminuísse gradualmente e permitisse a parada dos motores e o embarque dos refugiados – uma tarefa complicada, sobretudo porque o José Bonifácio foi o maior navio que já navegou sob bandeira brasileira em todos os tempos; um mostro de aço, com 334 metros de comprimento e tamanho de três campos de futebol juntos.
A manobra consumiu mais de uma hora, mas foi bem-sucedida. E na hora certa. Duas horas depois de o grupo ser resgatado, o furacão varreu o mar e não deu a menor chance ao barco onde os vietnamitas estavam.
Se não tivessem sido socorridos a tempo, todos teriam morrido.
Gratidão até hoje
Começava ali o sentimento de gratidão eterna de Phuog e Nguyen pelo Brasil. E isso continua até hoje, 41 anos depois.
"O Brasil recebeu a gente tão bem que nunca mais quisemos sair daqui", diz Phuog, que virou apenas "Fu" para os brasileiros, hoje dono do mais elogiado restaurante de comida vietnamita de São Paulo, o Miss Saigon, que ele toca junto a com a mulher Nguyen (que se autobatizou "Sônia") e os três filhos, todos nascidos aqui.
"Chegamos sem saber falar a língua e só com uma pequena ajuda em dinheiro da ONU, por seis meses. Mas logo tínhamos trabalho, casamos e montamos nossa vida aqui. Somos eternamente gratos ao Brasil", diz Fu.
Hoje com 62 anos, ele é uma espécie de líder natural da pequena comunidade vietnamita em São Paulo, que não soma mais que 100 pessoas – praticamente todas também originárias dos chamados "Boat People", como eram chamados os barcos com refugiados do Vietnã que se lançavam ao mar em busca de ajuda, no final da guerra.
O herói virou amigo
"Todos os que estavam no nosso barco vieram morar no Brasil e, depois, chegaram outros, também resgatados por navios brasileiros", conta Fu. Até hoje, ele nutre gratidão extrema pela tripulação do navio que os salvou – especialmente pelo comandante França, morto sete anos atrás, e que, mesmo a contragosto, foi transformado em herói por conta daquele episódio.
Até a morte do capitão, os dois se falavam com frequência – e Fu sempre terminava as conversas agradecendo uma vez mais o resgate.
Hoje, mesmo com a morte do comandante, o ritual de agradecimento constante continua através de um dos tripulantes do navio, o carioca José Menezes, que cuidou do grupo após o resgate.
"Trinta anos depois, eles me convidaram para o casamento do primeiro filho, e fizeram questão que eu chegasse na igreja junto com o noivo. Depois, interromperam a festa para me homenagear e servir de testemunha da história deles no mar, que ninguém acreditava que fosse verdade", recorda Menezes, hoje com 70 anos de idade e ainda recebendo contatos frequentes da família vietnamita.
"Devemos muito a pessoas como o Menezes", explica Fu, que, antes de se tornar dono e cozinheiro do pequeno restaurante em São Paulo, trabalhou como montador de pneus, costureiro de vestidos de noivas, fabricante de mochilas e o que mais lhe rendesse conhecimento e um pouco de dinheiro para sustentar a família.
"Aqui sempre foi muito melhor do que no Vietnã, onde a gente só tinha direito a um quilo de arroz por mês para comer", resume o vietnamita que veio parar no Brasil por puro acaso, graças ao heroico gesto de um comandante, que, por isso mesmo, fez história na Marinha Mercante Brasileira.
244 alemães também
Mas Phuog e Nguyen não foram os primeiros estrangeiros que vieram parar no Brasil por circunstâncias alheias à sua vontade que ocorreram no mar – mas, depois, gostaram tanto daqui que nunca mais quiseram sair.
Durante a Segunda Guerra Mundial, a tripulação inteira de um navio de cruzeiro alemão buscou abrigo no porto de Santos e nenhum daqueles 244 alemães jamais deixou o Brasil, mesmo tendo sido enviados para os primeiros campos de concentração criados no país – clique aqui para conhecer esta interessante história, que, tal qual a do casal vietnamita, teve um final feliz e também gerou profundas raízes estrangeiras no Brasil.
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