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Histórias do Mar

"Até a 'macharada' me respeita”, diz a mais antiga pescadora de SC

Jorge de Souza

24/02/2020 09h25

Aos 69 anos, a catarinense Nair Maria Cabral Mance continua fazendo o mesmo que fazia quando tinha apenas 11: pescando – todos os dias, de domingo a domingo, para garantir o seu sustento.

Nair, que ninguém na comunidade da praia da Ponta dos Ganchos, no município de Governador Celso Ramos, conhece por este nome, só pelo apelido de infância "Naca", que vem desde que ela, ainda menina, começou a ir para o mar pescar com o pai, foi a primeira e hoje é a mais antiga pescadora profissional de Santa Catarina – ou "pescadeira", como os catarinenses chamam as mulheres que ganham a vida pescando no mar, atividade na qual Naca foi a pioneira e, até hoje, a maior autoridade no assunto.

"Sou pescadeira desde sempre", diz Naca, que há quase 60 anos vive apenas com o que o mar lhe dá. "Mas amo o que faço, porque adoro o mar. Ele é um vício que entra na vida da gente e nunca mais sai", diz a catarinenses, que é aposentada como pescadora profissional há anos, mas que segue pescando, diariamente.

"Todo dia, vou para o mar às cinco da manhã e só volto perto do almoço. Mas já trago o que vou almoçar. O que sobra, eu vendo e ganho um dinheirinho. Mas já não vivo só disso, como antigamente. Hoje, recebo um salário mínimo da aposentadoria e outro da pensão que me marido deixou, quando morreu. Não reclamo da vida", diz Naca, que é admirada por todos que a conhecem.

Pescando, criou cinco filhos

O marido morreu quando ela tinha apenas 35 anos e a deixou com cinco filhos pequenos para criar, o que ela fez pescando sem parar. "Foi o mar que me ajudou a criar os filhos e a formar duas professoras", diz, orgulhosa, a hoje avó de doze netos e quatro bisnetos.

Na época, ela acordava de madrugada, deixava comida pronta para as crianças no fogão à lenha, e ia para o mar – sozinha, como sempre gostou de pescar.

Na volta, descarregava o barco, uma pequena bateira a remo (uma espécie de canoa tipicamente catarinense), passava na peixaria para vender o peixe, e corria para casa, para fazer o almoço das crianças. À tarde, voltava para o barracão de pau a pique montado na areia da praia, para limpar e remendar as redes que usaria no dia seguinte. E foi assim todos os dias.

Hoje, seu filho mais velho, que também é pescador, tem 52 anos, e a "caçula", uma das duas professoras que tanto orgulham a pescadora, 45. "Todos foram criados graças ao que o mar me deu", diz Naca, cujos filhos também se orgulham muito da mãe que tem".

Aula em universidade

"Ela já foi até chamada para dar aula sobre redes de pesca na universidade", diz, orgulhosa, a filha mais velha, que também é professora. "Minha mãe é uma pessoa excepcional, em todos os sentidos".

E não é só a família que pensa assim. Também entre os pescadores da região de Governador Celso Ramos, praticamente todos homens, Naca é quase uma líder – além de ser uma especialista em fincar e recolher, sozinha, redes de espera, às vezes com mais de um quilômetro de extensão.

"Quando estou no mar, sou como um homem, porque não posso me comportar como uma mulher", analisa. "E eles me respeitam, porque me veem como um deles", diz Naca, que por jamais aceitar que as mulheres não servissem para pescar, virou uma líder também entre as "pesqueiras" da região.

"Até a 'macharada' que acha que mulher não serve pra pescar me respeita, porque sabe que estou no mar há mais tempo do que eles", diz a pescadora catarinense, que mesmo à beira de completar 70 anos, ainda transpira vigor e paixão pela sua profissão. "Vou continuar pescando até quando Deus deixar", garante.

Hoje, contudo, Naca praticamente só pesca para o próprio consumo. "Não vivo sem peixe", diz. "Mas tem que ser fresco, porque peixe congelado não é a mesma coisa".

Tamanha intimidade com o mar lhe rendeu, também, uma relação bem estreita com a natureza. E uma crescente preocupação com o meio-ambiente marinho.

"Já vi tartaruga querendo comer saco plástico pensando que era água-viva. Isso não tá certo", indigna-se Naca, que gosta tanto da natureza que, quando pega mais peixes do que precisa, dá alguns para as gaivotas que ficam voando em torno do seu barco. "Elas são minhas amigas", diz.

Sustos no mar

Pescadores, quase sempre, nutrem profundo respeito pelo mar, porque o conhecem como ninguém. Mas isso não impede que, de vez em quando, eles próprios cometam imprudências.

Nove anos atrás, um pescador do Rio Grande do Norte mergulhou no mar para buscar uma balsa que havia caído do seu barco e não conseguiu voltar, por causa da correnteza. Acabou passando sete dias boiando no mar, sem água nem comida, até ser resgatado, quando já era dado como morto até pela própria família.

Naca diz que, "graças a Deus", nunca passou por algo parecido. Mas já viveu alguns perrengues no mar.

Como quando o mau tempo a derrubou do barco em movimento e ela só escapou porque se agarrou na rede, que vinha a reboque. "Fiquei agarrada na rede feito um siri, até que o barco parou", conta.

Ou no dia em que um tubarão ("cação", como ela diz) ficou preso na sua rede, e Naca sofreu horrores para embarcar o bicho, que pesou mais de 60 quilos e só morreu na base da paulada. "Pelo peso na rede, achei que era um defunto", recorda.

Por essas e outras, apesar da experiência, Naca nutre extremo respeito pelo mar.

"De tudo o que o meu pai me ensinou, o que eu nunca esqueci é jamais dar as costas para o mar, porque ele tem vida e sempre pode surpreender a gente", ensina a velha pescadora de pele enrugada pelo sol e pela idade, cujas mãos vivem permanentemente feridas pelos beliscões dos siris e esporões dos bagres.

Mas ela não se importa.

"O mar envelhece a gente por fora, mas deixa jovem por dentro", acredita a mais velha pescadora profissional de Santa Catarina.

Fotos: Giovanna Barreto

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.