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Histórias do Mar

Até pedido de casamento a bordo: o divertido cruzeiro dos farofeiros do mar

Jorge de Souza

23/08/2019 10h19

Três meses atrás, meia dúzia de casais, todos velejadores, resolveram fazer uma viagem em grupo com seus barcos do Rio de Janeiro até Pernambuco com o objetivo de participar da mais famosa regata do Brasil: a Recife-Fernando de Noronha, muito mais conhecida pela sigla Refeno, que acontecerá no início de outubro.

Mas, um amigo foi chamando outro, que convidou mais um, e o grupinho inicial acabou virando um grupão. Ou uma "flotilha", como é chamado no meio náutico o agrupamento de barcos que seguem na mesma direção.

Atualmente, o grupo já soma 20 veleiros, e ainda está apenas na metade do caminho, em Salvador, na Bahia, onde fizeram uma escala para participar de outra regata famosa, a Aratu-Maragogipe, que acontece neste sábado.

"A ideia era apenas não ir sozinho, mas acabamos virando um cruzeiro de fato", diz a idealizadora da inesperada viagem coletiva, a gaúcha Bruna Sobé, que mora no próprio barco, junto com o marido, Jairo.

"A gente só queria companhia na viagem, mas acabamos ganhando uma caravana, que já passa de 70 pessoas. E outras 30 ainda vão se juntar a nós, no caminho até Recife", comemora a gaúcha, que, junto com o resto da turma, já está no mar há dois meses, avançando muito lentamente na direção da capital de Pernambuco.

É que, embora o objetivo do grupo seja chegar a Recife para participar de uma competição de barcos à vela, o que eles vêm fazendo até lá é apenas um grande, preguiçoso e pra lá de divertido passeio, com longas paradas nos pontos mais interessantes do roteiro – onde o grupo se reúne de novo.

"Nosso cruzeiro não tem regras nem obrigações. Cada um parte quando quer, chega quando der e encontra e desencontra com o resto da turma quando estiver a fim. Navegamos juntos, mas separados, entende?", diverte-se a velejadora Renata Liu, uma das que aderiu ao grupo e que diz que poucas vezes se divertiu tanto numa travessia.

Um dos motivos disso é que, a cada parada, o que não falta é diversão. Quando não são recebidos por algum clube náutico, como já aconteceu no Rio de Janeiro e em Vitória, eles mesmo tratam de transformar o local, muitas vezes ermas praias desertas, em animadas festas improvisadas.

E a comilança come solta. Cada um prepara o que sabe no próprio barco, e leva para uma grande mesa comunitária, em algum boteco na praia. Ou então ficam visitando os outros barcos, onde sempre tem algo sendo preparado. Churrascos são praticamente diários.

"Já teve até rodízio de pizza em um dos barcos", diz Bruna. "Comida e risada neste cruzeiro é o que não faltam. Somos os 'farofenos', os farofeiros da Refeno", diverte-se.

O nome, de tão apropriado, acabou batizando o próprio cruzeiro, que ganhou até logotipo e camiseta. "Cada um pagou a sua, porque aqui ninguém paga nada para participar do grupo", explica Bruna, que ainda espera a adesão de mais uns dez barcos, antes de chegar a Recife.

No caminho, até agora, já houve algumas festas de aniversários, feirinha de troca de equipamentos náuticos (batizada de "Feira do Rolo", já que os interessados só trocavam uma coisa pela outra), e até um inusitado pedido de casamento, em pleno mar.

"Eu ia esperar chegar em Fernando de Noronha para pedir a Priscila em casamento, mas, na parada em Abrolhos, o astral do cruzeiro estava tão legal, que resolvi antecipar", conta o paulista Claudio Diniz, que mora com a noiva Priscila Silva no próprio barco há oito anos, e vive de levar pessoas para velejar, negócio que é conhecido no meio náutico como "charter" – e que, agora, já cogita seguir viagem com a noiva até o Caribe.

Outro que está aproveitando o improvisado cruzeiro para iniciar uma longa viagem é o aposentado capixaba Renato Silveira, de 53 anos, que pretende, após a chegada em Fernando de Noronha, seguir adiante e dar a volta ao mundo velejando sozinho. "Só vou sentir falta da alegria dessa turma", diz.

Mas, até agora, nem tudo foi só festa no alegre Cruzeiro Farofeno.

Durante a escala na paradisíaca baía de Camamu, no litoral sul da Bahia, um dos barcos foi invadido por dois bandidos armados, que espancaram barbaramente uma das participantes do cruzeiro – a capixaba Guta Favarato, cujo marido havia desembarcado para um passeio – antes de fugirem levando todo o dinheiro que encontraram – pouco mais de R$ 1 000.

"Foi horrível, um deles me amarrou e me espancou, até que eu desmaiei", contou a velejadora, que foi socorrida pelos outros barcos do cruzeiro, depois de pedir ajuda pelo rádio. "Imagine se não houvesse ninguém por perto", disse a velejadora.

A barbárie, no entanto, teve um lado positivo.

Ali mesmo, o grupo começou a colher assinaturas pela internet para um documento que pede a criação de uma guarda costeira brasileira, uma entidade encarregada de fiscalizar efetivamente o nosso litoral, e o reconhecimento dos barcos como algo similar a uma casa, o que daria aos seus proprietários o direito de possuir uma arma, o que hoje é vetado pela legislação.

O documento foi entregue esta semana ao Congresso Brasileiro, enquanto o animado grupo segue em frente rumo a Recife, onde pretende chegar no final do mês que vem após novas escalas em Barra de São Miguel, em Alagoas, e Praia dos Carneiros, em Pernambuco.

"Além da alegria, vamos deixar um legado para a segurança de todos os donos de barcos", diz a dona da ideia do irreverente cruzeiro dos farofeiros do mar.

Fotos: Divulgação/Farofeno

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.