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Histórias do Mar

Um mês depois, corpos de pescadores seguem no fundo do mar. E nada acontece

Jorge de Souza

20/04/2019 09h00

Enquanto batalhões de bombeiros buscam, há dias, vítimas do desabamento de dois prédios no Rio de Janeiro, familiares de dois humildes pescadores aguardam, há mais de um mês, que alguém decida resgatar os corpos de Inácio Patriota e Luiz Alves Miranda, mortos no naufrágio do pesqueiro Odelmar II, no final de fevereiro, nas imediações da Ilha Queimada Grande, no litoral sul de São Paulo.

"A Marinha diz que isso é responsabilidade do dono do barco e o dono do barco diz que não tem dinheiro para ir buscar o corpo do meu marido", diz, resignada, a esposa de uma das vítimas, Lucilene Patriota, que, junto com os dois filhos, Wellington, 23, e Guilherme, 17, vive o tormento de não poder por um fim na história do marido morto, porque lhe falta o corpo.

"Agora, tudo o que eu quero é poder dar um enterro digno ao meu marido, mas para isso dependo que alguém vá lá resgatar o corpo, que ficou preso dentro do barco".

"Sem o corpo, eu não consigo tirar o atestado de óbito, nem pedir o seguro de vida que ele tinha. E o nosso dinheiro está acabando", diz a viúva do pescador, que tinha 38 anos e não conseguiu sair do pesqueiro a tempo. Hoje Lucilene vive de vender lanches nas praias do Guarujá, onde vive, agora só com os dois filhos.

"Além disso, meu filho mais novo, que era muito apegado ao pai, vive dizendo que só vai acreditar que ele morreu quando ver o corpo, que todo mundo sabe onde está, mas ninguém vai buscar", diz, indignada.

Mesmo drama em outra casa

A mesma aflição vive a família da segunda vítima do naufrágio, o mestre Luiz Alves Miranda, de 62 anos, cujo corpo também afundou junto com o barco.

"Eu queria fazer um enterro decente, mas, para o dono do barco, é mais conveniente que o corpo não seja resgatado, porque sem uma prova da morte fica mais difícil pra gente pedir uma indenização", diz Marli, ex-companheira do pescador, que vive em Navegantes, no litoral de Santa Catarina, com os três filhos do casal, Paolo, André e João Gabriel, com idades entre 13 e 28 anos. Os três outros filhos de Luiz, Daiane, Fabiano e Luiz, vivem no Rio Grande do Sul.

"Quando aconteceu o naufrágio, o dono do barco levou três dias pra avisar e, agora, já está há mais de um mês sem tomar nenhuma providência para resgatar os corpos. É um completo descaso", diz Marli, revoltada com a demora e o pouco caso também das autoridades.

"Como o dono do barco não quer pagar mergulhadores para ir lá retirar os corpos, nada acontece".

Pouco mais de um mês atrás, a Marinha localizou o barco naufragado, a 38 metros de profundidade, a cerca de três quilômetros da Ilha Queimada Grande, e avisou o proprietário, a quem cabe a responsabilidade pelo resgate. Mas como se trata de uma operação delicada, dada a profundidade em que o barco se encontra, a Marinha exigiu uma série de procedimentos de segurança, que custam dinheiro. "E aí a coisa pegou", diz Marli.

Dono do barco, Alex Lopes Diaz desconversa quando perguntado sobre o que pretende fazer para resgatar os ex-funcionários mortos. "Não sei responder", diz apenas, dando a conversa por encerrada.

Três dias numa ilha selvagem

O naufrágio do pesqueiro Odelmar II aconteceu na noite de 28 de fevereiro, quando duas ondas em sequência fizeram o barco capotar e imediatamente afundar, quando se aproximava da deserta Ilha de Queimada Grande, famosa por abrigar uma quantidade extraordinária de cobras venenosas, de uma espécie que só existe lá.

Foi justamente para a ilha que os quatro sobreviventes do naufrágio, todos também pescadores, seguiram, depois de passarem a noite inteira nadando. Lá, eles ficaram três dias sem água nem comida, abrigados numa espécie de gruta, até que foram avistados por uma lancha que levava mergulhadores para a região.

"A gente via umas bananeiras na ilha, mas, como sabia das cobras, não arriscava ir até elas", contou, ao ser resgatado, Iranildo Rodrigues, um dos quatro sobreviventes, que também tentou puxar os companheiros para fora do barco, no momento do acidente.

"O Luiz chegou a sair da cabine, mas o barco tombou sobre ele", recorda. "Eu queria mergulhar e puxá-lo, mas os meus companheiros não deixaram, porque eu teria morrido junto. Foi tudo muito rápido. Agora, todo dia eu oro pelo reconforto dos familiares. Não ter um corpo para enterrar, mesmo sabendo onde ele está, é triste demais", completa Iranildo, que junto com os demais sobreviventes foi demitido em seguida ao naufrágio.

"O dono do barco disse que não tinha mais um barco pra gente trabalhar e demitiu todo mundo", diz Elenilson da Silva, outro sobrevivente da tragédia, que, ao contrário do desabamento dos prédios cariocas, até agora não mobilizou ninguém para resgatar os corpos dos dois pescadores.

"Será que não vou poder me despedir do meu marido?", diz, desconsolada, a viúva Lucilene.

 

Fotos: Reprodução e Paradise Sub/Fábio Drago

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.