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Histórias do Mar

Sono de 20 minutos e balde como banheiro: a dura vida de velejador extremo

Jorge de Souza

22/03/2019 12h31

Muitas pessoas fazem coisas extraordinárias. Algumas pessoas fazem coisas realmente extraordinárias. Mas pouquíssimas pessoas fazem o que o velejador inglês Alex Thomson faz: dar a volta ao mundo velejando sozinho, dia e noite sem parar, durante quase três meses seguidos no mar. E com um barco que é uma espécie de Fórmula 1 da vela.

Alex Thomson é um velejador profissional de regatas de longa duração, um esportista de alto rendimento que ganha a vida competindo nas mais longas e inclementes competições de veleiros do planeta.

Entre elas, a mais desafiadora de todas: a regata Vende Globe, que obriga os seus participantes a contornar todo o globo terrestre, velejando 24 horas por dia, durante meses a fio, e o que é pior: sozinho no barco. Não por acaso, a Vende Globe é considerada a mais dura competição esportiva do planeta.

Passou pelo Rio de Janeiro

Thomson já participou desta regata quatro vezes. Nas duas primeiras ocasiões, seu barco quebrou. Em 2012 terminou em terceiro lugar. E na última, em 2016, foi segundo. Na próxima edição da Vende Globe, que só acontece a cada quatro anos e será disputada no ano que vem, seu objetivo é um só: vencer a prova.

Para isso, ele estabeleceu para si mesmo um programa de treinamento tão intenso quanto a própria competição: decidiu que iria navegar a mesma distância da volta ao mundo, apenas para treinar.

E foi durante esta extenuante preparação que ele passou pelo Rio de Janeiro, na semana passada, a caminho do México.

Ao longo de sua vida, Thomson já navegou o equivalente a duas vezes e meia a distância que separa a Terra da Lua.

Começou cedo, aos 18 anos, vencendo logo de cara uma regata de volta ao mundo – é, até hoje, o mais jovem velejador a ter feito isso. Atualmente, tem 44 anos e passa quase metade dos dias do ano no mar, velejando. Quase sempre, sozinho.

"A pior parte é a saudade da família", diz Thomson, que é casado, pai de dois filhos e líder de uma equipe de 25 pessoas. "Mas a falta de conforto no barco também incomoda um pouco", diz, atenuando uma questão que para, qualquer pessoa, seria decisiva na hora de jamais pensar em embarcar num barco igual ao dele.

Um barco de R$ 30 milhões

O barco do inglês, um impressionante veleiro de fibra de carbono totalmente negro (é o primeiro do mundo desta cor) com cerca de 19 metros de comprimento, é o que de mais avançado – e veloz – existe no mundo da vela, entre os veleiros com apenas um casco.

O barco de Thomson tem um mastro com a mesma altura de um prédio de dez andares e velas que cobririam uma área equivalente à de três quadras de tênis.

Chega a atingir 70 km/h (velocidade até então impensável para um veleiro) e possui duas "asas" nas laterais do casco, cuja função é "erguer" o barco, para que ele toque o menos possível na água, ficando ainda mais rápido.

Em certas situações, o barco de Thomson consegue ser mais veloz que o próprio vento que o move – algo que, a princípio, soa impossível. E, quase sempre, passa mais tempo voando do que navegando.

"Às vezes, viro mais piloto do que velejador", brinca o inglês, cujo barco custou cerca de R$ 30 milhões, mas já está sendo substituído por outro, ainda mais avançado.

O que mais impressiona no barco de Thomson e a forma como ele navega: completamente inclinado, a 45 graus. Ou até mais.

Isso fez com que o inglês tinha tido uma ideia pra lá de ousada tempos atrás, para divulgar a marca do seu patrocinador, a grife Hugo Boss. Ele inclinou tanto o barco sobre o mar que caminhou até o topo do mastro, como se fosse uma rampa. E, de lá, saltou no mar. O vídeo já teve mais de três milhões de visualizações na internet.

Navegando em alta velocidade, a sensação é que, empurrado pelos fortes ventos oceânicos, o barco de Thomson irá virar de vez. E isso só não acontece porque, no fundo do casco, existe uma quilha móvel que inclina na direção contrária à do barco, impedindo que ele tombe.

"Sem a tecnologia eu não conseguiria fazer o que faço", admite o inglês, que, no entanto, sofre um bocado dentro do barco.

Como se não bastasse passar o tempo todo (leia-se 74 dias seguidos, como aconteceu na última competição de volta ao mundo) tentando se equilibrar sobre um piso inclinado feito uma parede e com o veleiro saltando nas ondas feito um touro bravo (as maiores costumam cobrir o barco inteiro e o inundam até por dentro), Thomson ainda precisa conviver com um ambiente absolutamente hostil dentro do próprio barco.

A cabine é um caverna

A cabine onde ele descansa (bem pouco, porque, quando faz isso, não fica ninguém pilotando o barco), dorme (não mais que 20 minutos por vez, pelo mesmo motivo) e se alimenta (o que só possível quando o mar permite) é uma espécie de caverna, com uma cama, um fogareiro e mais nada.

Não há sequer banheiro. Só uma espécie de balde. E banho, só quando chove.

"Em certas ocasiões, me sinto como se estivesse dentro de um caixão no meio do mar", diz Thomson, reconhecendo que não existe conforto algum no que ele faz.

"É preciso estar preparado também psicologicamente para dar uma volta ao mundo sozinho com um barco desses", admite. "Por isso, além do corpo, eu treino também a mente", diz.

Em novembro ele volta

Mesmo assim, nem de longe Thomson pensa em parar de competir na modalidade que lhe trouxe fama mundial.

Ao contrário, em novembro deste ano ele espera estar de volta ao Brasil, na chegada da regata Jacques Vabre, que trará uma centena de barcos da França para a Bahia. E, no ano que vem, embarcará em mais uma competição de volta ao mundo em solitário.

Não foi a primeira vez que uma estrela do primeiríssimo time da vela mundial visitou o Brasil. Mas, desta vez, tudo terminou bem, ao contrário do que aconteceu 18 anos atrás com o então considerado maior velejador do mundo, o neozelandês Peter Blake, uma espécie de Ayrton Senna da vela, que foi morto por bandidos na Amazônia, durante um assalto ao seu barco, num episódio que envergonhou até a diplomacia brasileira e que pode ser relembrado aqui.

Felizmente, com Alex Thomson o único assédio em solo brasileiro foi o das pessoas, curiosas como o seu peculiar jeito de viver a vida, o que o obrigou a responder inúmeras vezes sempre às mesmas perguntas.

As perguntas que todo mundo faz

Não sente medo?

"O medo, na dose certa, é benéfico, porque faz você ficar o tempo todo alerta e impede que cometa imprudências. Mas controlá-lo é fundamental, porque jamais pode haver pânico. No meu caso, para relaxar, aprendi a praticar uma técnica chamada "Visão de Helicóptero", na qual me imagino voando sobre o barco e observando o que se passa ao redor dele. Isso me permite controlar a adrenalina e baixar os batimentos cardíacos, ajudando a raciocinar melhor nos momentos mais tensos. E até a pegar no sono mais rapidamente.

Não sente fome?

Não, embora não tenha um grão de comida no meu barco. Todos os alimentos que consumo são em pó e tudo o que eu tenho é uma espécie de fogareiro, que uso para aquecer a água que irá transformar os pozinhos em alimento. Claro que sinto falta de um prato de comida e de uma barra de chocolate. Mas no barco, isso, infelizmente, não é possível.

Não sente solidão?

Solidão não, embora sinta muitas saudades da família. Mas, isolamento, sim. Em certas partes dos mares mais remotos do planeta os seres humanos mais perto de mim naquele instante costumam ser os astronautas da Estação Espacial, já que não existe nenhuma ilha ou terra firme num raio de milhares de quilômetros. Deve ser por isso que já houve mais astronautas no espaço do que homens que deram a volta ao mundo velejando em solitário.

Não sente cansaço?

Sim, até porque o esforço para subir e baixar, sozinho, velas que pesam mais de 100kg é tremendo. Mas compenso isso com um bom treinamento físico antes das competições e com rígidos turnos de descanso no barco, onde, porém, não posso dormir muito, porque não fica ninguém lá fora, pilotando no meu lugar. Para isso, fiz um treinamento científico e acostumei meu organismo a relaxar em turnos de apenas vinte minutos de sono, a cada duas horas. Parece pouco, mas uma pessoa bem treinada fisicamente e mentalmente consegue. Uso um alarme que toca a cada vinte minutos na cabine, para eu acordar. Funciona bem. Mas na única vez que o alarme falhou, acordei com o barco batendo nas pedras, a poucos quilômetros da linha de chegada de uma regata que atravessou o Atlântico. Por muito pouco eu não morri na praia. Literalmente.

Fotos: Divulgação Alex Thomson

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.