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Histórias do Mar

A velejadora que levou 25 anos construindo um barco agora quer morrer nele

Jorge de Souza

20/02/2019 09h00

Depois de passar 25 anos construindo um pequeno veleiro, sem dinheiro, com a ajuda do marido e no quintal de casa, e quase 10 anos após descobrir que tinha um tipo raro e incurável de câncer, já em estágio avançado (o que fez com que o casal se empenhasse em terminar o barco a tempo de ela poder aproveitá-lo), a paulista Elfriede Galera, de 63 anos, vive um momento de entusiasmo, mas com plena consciência da sua frágil realidade.

O entusiasmo, característica marcante desta mãe de dois filhos, apaixonada pela vida, pelo mar, e determinada, desde jovem, a construir um barco (algo que começou em 1989 e só terminou em 2015, um quarto de século depois), vem de dois motivos.

O primeiro é que, contrariando os prognósticos médicos que haviam lhe dado não mais que dois anos de vida, quando detectaram um tipo raro de câncer de mama já espalhado por ossos, fígado, pulmão e demais partes do corpo, Elfriede segue viva quase uma década depois, apesar das doses cada vez maiores de morfina para suportar a dor e das sessões cada vez mais frequentes de quimioterapia.

"Ainda estou viva e comemoro isso todos os dias", diz a velejadora amadora, dona de uma alegria contagiante.

Já o segundo motivo do seu entusiasmo é que, a exemplo do que aconteceu com ela, Elfriede agora vai usar o barco que ela mesma construiu para tentar ajudar outras mulheres também com câncer. Como? Levando estas mulheres para experimentar a sensação de velejar – todas elas pela primeira vez.

"Quero que elas sintam o mesmo prazer que eu sinto todas as vezes que o vento bate no meu rosto e me faz esquecer a doença", diz.

Elfriede criou o Projeto Velejando Contra o Câncer de Mama e jamais encarou a doença com depressão ou desânimo. Muito pelo contrário.

A ideia de levar outras mulheres com câncer para velejar veio dois anos atrás, quando, durante uma sessão de quimioterapia no hospital público Pérola Byington, em São Paulo, onde Elfriede sempre se tratou, ela ouviu de uma paciente ao lado, uma senhora de origem bem humilde, que o sonho dela era fazer um passeio no mar.

"Enquanto ele me contava isso, os olhos dela brilhavam, como se estivesse navegando na imaginação. Daí, na hora, eu a convidei para ir comigo. Infelizmente, ela morreu antes disso. Mas plantou a ideia do projeto", explica Elfriede, a "Frida", para os amigos.

O primeiro passeio do gênero, ainda experimental, aconteceu na Represa Guarapiranga, em São Paulo, no final do ano passado, e reuniu, além de um médico oncologista, para qualquer eventualidade, duas mulheres portadoras de câncer que se tratam em hospitais da rede pública de São Paulo – esta, a única condição para participar do projeto, porque o objetivo é atender as pacientes mais carentes, com prioridade para aquelas que não podem esperar tanto…

Na ocasião, mesmo debilitada, Elfriede fez questão de pilotar o barco e se emocionou com o que viu e ouviu das companheiras de passeio. "Uma delas, mesmo careca pela quimioterapia, dizia sentir o vento 'mexendo os seus cabelos'. Me senti plenamente recompensada por ter trazido esta sensação de volta para ela", recorda Elfriede, que já tem o próximo passeio programado. "Será em breve, em Ilhabela, no meu querido barquinho, que eu e meu marido construímos".

"O objetivo dos passeios é fazer com elas, ao verem a imensidão do mar e sentirem o gostoso balanço das ondas, esqueçam da doença ao menos por um dia e percebam que vale a pena lutar para viver, que é o que eu venho fazendo nos últimos anos", diz Elfriede, que para ajudar nas despesas do projeto, criou um sistema de captação de recursos na internet e, quando a saúde permite, dá palestras onde conta sua vida e a importância que o barco que construiu tem nela, até hoje.

"Quando a Elfriede pisa no barco, ela se transforma", diz o marido, Jadyr Galera, que ajudou a esposa a construir o veleirinho, de menos de nove metros de comprimento, que eles levaram quase metade da vida para terminar. "Ela pode estar cheia de dores que imediatamente sorri, feliz. É como uma terapia do mar, o único tratamento que para ela ainda faz efeito", completa, conformado.

Elfriede ainda mais. Tanto que ela já decidiu como quer morrer e o que será feito de seu corpo depois disso. "Fiz um testamento vital e registrei que não quero hemodiálises, intubações nem vida inconsciente e vegetativa no hospital. Quero que a natureza cumpra o seu ciclo e, depois disso, ser cremada, com minhas cinzas jogadas ao mar, durante um passeio no meu barco, que é "o meu filho mais velho'. Não quero choro. Enquanto o meu veleirinho existir, eu, de certa forma, também estarei viva", explica, sem nenhum tabu sobre o assunto.

Depois de passar boa parte da vida construindo um barco, Elfriede, agora, quer se despedir da vida nele. "É o meu último desejo", diz.

E para saber as razões desta relação tão estreita entre uma pessoa e um barco, leia a perseverante história do veleirinho que levou um quarto de século para ficar pronto – e que, há quase uma década, mantém Elfriede viva.

 

Fotos: Arquivo Pessoal

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.