Expedição tentará achar os restos do barco "engolido" pelo mar na Antártica
Em 21 de novembro de 1915, após torturantes 10 meses preso ao mar congelado da Antártica, o Endurance, famoso barco do legendário explorador irlandês Ernest Shackleton, líder de uma expedição exploratória que pretendia se tornar a primeira a atravessar o continente gelado de uma ponta a outra, não resistiu ao calvário e sucumbiu no Mar de Weddell.
O naufrágio não gerou vítimas, já que Shackleton e seus 27 homens estavam vivendo fora do barco condenado há meses.
Mas gerou uma das mais épicas façanhas de sobrevivência do século passado, quando Shackleton, a bordo de um pequeno barco a remo, empreendeu uma insana travessia de mais de 1 000 quilômetros em um dos mares mais furiosos do planeta, em busca de ajuda para os seus homens, que foram salvos, meses depois – feito que é considerado o mais extraordinário da história da conquista da Antártica.
Quando, porém, Schackleton retornou para resgatar a sua equipe, o Endurance ("Resistência", em português), não existia mais.
Engolido pelo gelo
Engolido pelas abissais profundezas do mar congelante de Weddell, o barco desapareceu da paisagem e nunca mais foi visto – embora, desde então, a localização do seu naufrágio seja, mais ou menos, conhecida.
Mas o barco jamais foi encontrado.
É isso o que uma nova expedição irá tentar achar, no fundo do mar, no início do ano que vem: os restos do Endurance, o icônico barco de Ernest Schackleton, hoje considerado o mais famoso naufrágio ainda não localizado do mundo – e, também, o mais difícil.
Será a segunda tentativa do gênero e terá início nos primeiros dias de fevereiro de 2022, um mês após o centésimo aniversário da morte de Schackleton, que faleceu nas Ilhas Georgia do Sul, onde está enterrado, sete anos após o heroico resgate dos seus homens na Antártica.
Robô desapareceu
A primeira tentativa, dois anos atrás, com a mesma equipe que agora irá tentar novamente (mas com novos equipamentos), fracassou, quando o submergível não tripulado que estava sendo usado para vasculhar o fundo do mar simplesmente desapareceu sob o mar congelado.
Por isso, será usado um novo mini submarino, capaz de manobrar com mais desenvoltura sob os imensos blocos de gelo que revestem o Mar de Weddell – e debaixo dos quais estão os restos do Endurance, só não se sabe exatamente onde.
Estima-se que o Endurance esteja a cerca de 3 000 metros de profundidade, mas em razoável bom estado, já que a combinação de água muito fria, com baixa oxigenação e nenhuma luminosidade, são favoráveis a preservação da madeira da qual o barco, de 44 metros e comprimento, foi feito.
Também o fato de estar em um ponto tão profundo deve ter permitido que os icebergs tenham passado por cima dos restos do barco, sem danificá-lo.
Tudo isso permite supor que, apesar dos 106 anos submerso, o Endurance ainda esteja visível no fundo, o que facilitará a sua localização pelo robô submarino mais desenvolvido que o anterior.
3 motivos para o otimismo
Além disso, outros três aspectos deixam os pesquisadores otimistas de que, desta vez, encontrarão o barco:
1 – Localização mais ou menos conhecida
Pouco antes de o Endurance ser esmagado pelo gelo e afundar, o navegador da expedição, Frank Worsley, registrou a sua posição com um sextante, equipamento manual de localização no mar. Ou seja, o local sempre foi conhecido.
O problema é que o imenso bloco de gelo que envolveu o barco estava à deriva, e a medição foi feita três dias antes do naufrágio, o que certamente gerou alguma variação na sua real posição.
Mas, como a expedição anterior já vasculhou uma pequena parte da região, a área a ser pesquisada agora é um pouco menor – embora, ainda assim, gigantesca, porque não se sabe o quanto o bloco de gelo se movimentou, naqueles três dias.
2 – Submergível mais bem equipado
A primeira expedição, em 2019, teve que ser interrompida quando o robô submarino do navio de pesquisas perdeu contato com a superfície e desapareceu, sob imensos blocos de gelo, após apenas 20 horas de varreduras.
Mas agora será usado um novo equipamento, fabricado pela Saab e chamado de Sabertooths, com maior autonomia e capaz de operar tanto como veículo autônomo submarino (ou seja, com capacidade de achar o próprio caminho e sem cabos que limitem o seu movimento) quanto ser operado remotamente, para o caso de apresentar algum defeito.
Além disso, imagens do satélite TerraSAR-X, da agência espacial alemã, facilitarão o acesso do navio ao local das buscas, o que sempre foi o maior obstáculo nas operações.
3 – Expectativa de menos gelo na região
O perverso efeito do aquecimento global, que tem se traduzido em camadas de gelo cada vez menos espessas em certas partes da Antártica, pode ser benéfico para a expedição, porque tende a facilitar a penetração do navio no mar congelado onde ocorreu o naufrágio.
Além disso, quanto mais rápido a equipe chegar ao local, mais tempo terá para buscar o Endurance, antes que termine o verão antártico, única temporada possível de isso ser feito.
"Chegamos bem perto dele"
A nova expedição, batizada de Endurance22, será financiada pela entidade inglesa Falklands Maritime Heritage Trust, das Ilhas Falklands (também conhecidas como Ilhas Malvinas, aquelas da guerra contra a Argentina, em 1982), e usará o mesmo navio quebra-gelo da busca anterior, o Agulhas II, que pertence ao governo da África do Sul, onde começará a viagem.
No total, a equipe terá 50 pessoas, lideradas pelo explorador polar inglês John Shears, um grande admirador de Schackleton, que também conduziu a primeira expedição em busca do Endurance.
"Da primeira vez, tenho certeza que chegamos bem perto dele, e, talvez, o nosso robô que desapareceu até o tenha filmado. Mas agora estou bem mais confiante, apesar de ser impossível dizer que acharemos o barco", diz o líder da expedição.
Mar coberto de gelo
O que torna tão difícil a localização dos restos do barco de Schackleton é o acesso até o ponto onde ele naufragou.
O Mar de Weddell vive permanentemente coberto de gelo, com grandes icebergs e espessas camadas sobre a superfície, o que torna extremamente complexa e arriscada a navegação, mesmo para modernos navios quebra-gelo, como o Agulhas II.
Na primeira expedição, o navio foi detido pelo gelo em algumas ocasiões e precisou dar grandes voltas para contornar as áreas mais críticas.
"O maior problema não é achar o barco no fundo do mar. É conseguir chegar até lá", resumiu, na ocasião, o comandante do navio.
Por isso, desta vez, a equipe não descarta a possibilidade de lançar e operar o robô submarino não a partir do navio de pesquisas e sim de buracos feitos no gelo, em acampamentos avançados, caso o Agulhas II não consiga seguir adiante.
Herói das explorações polares
Após a conquista do Polo Sul pelo explorador norueguês Roald Amundsen, em 1911, apenas quatro anos antes, Schackleton concluiu que a única façanha que restara na Antártica era a travessia a pé do continente gelado.
Era o que ele pretendia fazer, assim que atingisse um ponto onde pudesse ancorar o seu barco e iniciar a longa jornada.
Mas o mar congelou bem mais que o previsto, trancou o Endurance na área que Schackleton considerava "a pior parte do pior mar do mundo", e o seu grande feito acabou sendo o de tirar os seus homens daquele inferno branco, o que ele fez após uma epopeia histórica.
Apesar do fracasso da expedição, Schackleton é considerado o símbolo maior da heroica era das explorações polares.
E o seu barco, um item histórico.
Daí o interesse mundial em encontrá-lo
Não será resgatado
No entanto, mesmo que isso aconteça, já está determinado que nada será feito nem retirado do barco – que será apenas filmado.
"O Endurance é um ícone histórico e, mesmo sem se saber onde ele está, foi declarado como monumento pelo Tratado Antártico", diz o chefe da expedição, John Shears. "Por isso, vamos apenas registrá-lo e escaneá-lo com raios lasers, para a criação de um modelo em 3D, que, este sim, poderá ser visto pelas pessoas em um museu. Nunca pensamos em resgatar o barco, que deve ser deixado onde está, há mais de um século".
Uma triste lição
Além das inimagináveis dificuldades em resgatar uma embarcação que está a mesma profundidade do Titanic, mas em um mar que passa o ano inteiro congelado, há o gigantesco risco de destruir o barco na própria operação de resgate.
Ou que ele venha a se auto destruir depois, após tanto tempo debaixo d´água.
Casos semelhantes já aconteceram no passado e ensinaram historiadores e arqueólogos a resistirem à tentação de trazer de volta à superfície velhos barcos naufragados – porque eles podem não resistir a mudança do ambiente.
O caso mais emblemático aconteceu em 1969, quando, após anos de esforço, um mergulhador americano conseguiu resgatar do fundo dos Grandes Lagos a histórica escuna Alvin Clark, do século 19, com o objetivo de expô-la ao público a céu aberto e ganhar dinheiro com a venda de ingressos.
Foto Peter Van der Linden/Saginaw River Marine Historical Society
Mas deu tudo errado e o barco acabou sendo corroído pelo contato com o ar, e o que restou dele pelos tratores de uma empresa interessada no terreno onde estava – clique aqui para conhecer este exemplar caso, que gerou a criação de uma legislação para a preservação de naufrágios, o que não existia nos Estados Unidos, até então.
Foi um triste aprendizado, mas benéfico para o Endurance.
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