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Histórias do Mar

Caçador de naufrágios ganha direito sobre tesouro em navio da 2ª Guerra

Jorge de Souza

02/01/2021 04h00

Reprodução: S.S.Tilawa Foundation

Em novembro de 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, um submarino japonês atacou e afundou o navio inglês SS Tilawa, quando ele navegava a cerca de 1 500 quilômetros da costa da África, com 958 pessoas a bordo e uma carga igualmente valiosa: 60 toneladas de lingotes de prata, hoje avaliados em mais de R$ 230 milhões, que estavam sendo transportados para a África do Sul.

Na semana passada, 78 anos depois, o episódio, que gerou a morte de 280 ocupantes do navio e o desaparecimento de 2364 lingotes de prata no fundo do mar por mais de sete décadas, voltou à tona, nos tribunais da Inglaterra.

Alegação não procede

Numa decisão que gerou indignação no governo da África do Sul, que se considera dono daquelas barras de prata, já que elas haviam sido encomendadas para a confecção de moedas, o tribunal do Almirantado Britânico, a quem cabe julgar casos que envolvam embarcações do Reino Unido ocorridos no mar, decidiu que não procede a alegação dos sul-africanos, e deu ganho de causa ao inglês Ross Hyett, um caçador profissional de tesouros em naufrágios, dono da empresa Argentum Exploration, que encontrou os restos do SS Tilawa em 2014, de olho, justamente, na valiosa carga que ele transportava.

"A carga do navio tinha propósitos comerciais, portanto a alegação do governo Sul-Africano de que a prata pertence ao seu Estado não tem fundamento", escreveu o juiz Nigel Teare, no despacho.

Caso ainda não terminado

O inglês Hyett, de 67 anos, um ex-piloto de corridas de automóveis que, ao se aposentar das pistas, passou a se dedicar à caça de tesouros perdidos no mar (uma atividade bem mais comum do que se possa imaginar e, em muitos casos, com surpreendentes resultados práticos), comemorou a decisão.

Mas a verdade é que este caso está longe de ter terminado.

Torpedeado pelos japoneses

O SS Tilawa, que vinha de Bombai, na Índia, rumo ao porto de Mombasa, no Quênia, com escalas em Maputo, em Moçambique, e Durban, na África do Sul, onde a prata seria desembarcada, afundou na madrugada de 23 de novembro de 1942, após ser atingido por dois torpedos disparados pelo submarino japonês I-29, quando navegava nas proximidades das Ilhas Seychelles, ao final do seu quarto dia de travessia.

Entre um disparo e outro, houve um intervalo de cerca de 30 minutos, o bastante para a maioria da tripulação e dos passageiros, quase todos indianos, que partiam para tentar a vida na África, embarcassem em botes salva-vidas e escapassem com vida do naufrágio – embora muitos deles tenham morrido depois, por afogamento, quando os botes começaram a afundar, pelo excesso de peso.

Governo esqueceu o caso

O socorro só veio dois dias depois, quando o cruzador inglês HMS Birmingham, que havia recebido o pedido de socorro do operador de rádio do SS Tilawa (que morreu por causa disso, porque não conseguiu escapar a tempo do navio, antes do disparo do segundo torpedo), finalmente chegou ao local e começou a recolher os sobreviventes, que foram levados de volta à Índia.

Já o SS Tilawa afundou feito uma pedra, em local não precisamente definido.

E, com o passar do tempo, o próprio governo sul-africano esqueceu o acidente e a prata perdida no mar.

Achou em 2014

Até que, em 2014, após intensas pesquisas (e suspeitos contatos com informantes secretos), Hyett achou os restos do navio, mas não contou isso para ninguém.

Três anos depois, em 2017, após conseguir recursos através de sociedades com outras empresas do ramo, Hyett passou a retirar, secretamente, os lingotes de prata do navio afundado, atividade que consumiu cerca de seis meses.

Escondendo o tesouro

Por sorte, o local do naufrágio ficava fora das águas territoriais dos países da costa leste africana, nas chamadas "Águas Internacionais", o que, num primeiro momento, deu certa tranquilidade a Hyett, já que, mesmo se fosse descoberto, ele não estaria infringindo nenhuma lei.

Mas, por precaução, para evitar confiscos, toda a prata retirada do navio passou a ficar estocada em caixas no fundo do mar, à espera de ser içada de uma só vez, pouco antes da partida, rumo à Inglaterra, para onde todos os lingotes foram efetivamente levados por Hyett.

Também por precaução, ele optou por fazer o caminho mais longo na volta à Inglaterra, contornando toda a África, em vez de usar o Canal de Suez, o que encurtaria barbaramente a viagem, mas o obrigaria a declarar sua carga sigilosa às autoridades portuárias.

Não contou a ninguém

No final de 2017, as 60 toneladas de prata retiradas do SS Tilawa chegaram em segurança ao porto de Southampton, na Inglaterra, tornando Hyett momentaneamente milionário – embora, como quase sempre acontece nos casos de grandes achados no fundo do mar, ele não tenha tornado pública a sua descoberta.

Mas o que Hyett não sabia era que, pouco antes disso, outra empresa de exploração de naufrágios, a americana Odyssey Marine Exploration, havia entrado em contato com o governo da África do Sul, propondo justamente encontrar o SS Tilawa e dividir o tesouro com os sul-africanos.

Recorreu ao tribunal

A proposta reavivou no governo da África do Sul a lembrança da prata perdida e atiçou o desejo de resgatá-la. Mas Hyett já havia feito isso, meses antes, o que seria descoberto em seguida.

Como a prata ("roubada", na opinião dos sul-africanos) já estava em solo inglês, só restou ao governo da África do Sul recorrer ao Tribunal do Almirantado Britânico, na esperança de que a ação de Hyett fosse julgada ilegal, o que, no entanto, não aconteceu.

Decisão não é definitiva

Ao contrário, o tribunal reforçou a tese de que o explorador inglês tem direitos sobre a prata resgatada, "porque, muito provavelmente, ela só foi lembrada pelo governo sul-africano quando houve a proposta da Odyssey", como o juiz Nigel Teare destacou em sua sentença, reproduzida na semana passada pelo jornal inglês The Times.

Mas esta decisão não é definitiva, o que impede um ponto final nesta história.

O maior tesouro submerso da História

Restos do galeão San Jose, considerado o tesouro submerso mais valioso da História.
Reprodução: Instituto Colombiano de Antropología e Historia

Como a empresa de Hyett, tal qual a maioria das empresas de explorações de naufrágios, é vista com ressalvas pelos meios que costuma empregar para descobrir e resgatar conteúdos de navios naufragados (na mesma época, através de outra empresa na qual era sócio, Hyett também esteve envolvido no polêmico resgate, junto com o governo colombiano, daquele que é considerado o maior tesouro submerso já descoberto, o do galeão espanhol San Jose, encontrado anos atrás, na costa da Colombia, onde afundou em 1708 com uma quantidade inédita de ouro, prata e pedras preciosas, hoje estimadas em cerca de R$ 100 bilhões – clique aqui para conhecer esta história que também ainda não terminou , o caso da prata retirada do SS Tilawa ainda deve render acaloradas discussões e debates com o governo sul-africano.

Mundo nebuloso

O próprio Hyett não exclui a possibilidade de negociar a prata com o próprio governo sul-africano, desde que seja um bom negócio para ele.

Também a Odyssey Exploration já andou envolvida em operações suspeitas de resgates de tesouros.

Em 2007, a empresa encontrou e passou a explorar os restos do galeão espanhol Nuestra Señora de las Mercedes, que afundara na costa de Cadiz, na Espanha, quando foi interceptada pela polícia espanhola e teve seu barco apreendido.

Mas, antes disso, a empresa já havia desviado o que havia retirado do fundo do mar para os Estados Unidos, e se recusou a indicar para o governo espanhol a exata localização do histórico galeão, situação que persiste até hoje.

Não existem boas intenções no nebuloso mundo dos caçadores de tesouros.

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.