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Histórias do Mar

Caravela de Colombo construída no Brasil parte para o Caribe. Navegando

Jorge de Souza

31/10/2020 04h00

Caso você esteja no litoral, não estranhe se vir passar no mar, nos próximos dias, uma caravela igualzinha à dos livros de História.

Muito provavelmente, será a cópia fiel de um barco realmente histórico: a nau Santa Maria, usada por Cristóvão Colombo para descobrir a América, em 1492. A réplica, construída em Santa Catarina, acaba de partir rumo ao Caribe. Navegando, como faziam as antigas caravelas.

Só que, apesar da aparência digna de filme de Hollywood, o barco em questão nada tem de antigo.

Ao contrário. Trata-se de um moderno pequeno navio equipado com o que existe de mais avançado em recursos de navegação, como radar, cartas náuticas eletrônicas, sistema de comunicação via satélite, dessalinizador capaz de transformar a água do mar em potável e, em vez de velas, dois motores a diesel.

O casco é de aço, mas, pintado, imita com perfeição a madeira das caravelas do passado.

Um mês de travessia

A curiosa embarcação – que tem 28 metros de comprimento, mais de 8 de largura e passa dos 18 de altura, com três (falsos) mastros e velas só de enfeite – foi construída em um estaleiro de Itajaí e finalizada em outro, no vizinho município de Navegantes, de onde partiu, na manhã deste sábado, rumo à ilha de Curaçau, no Caribe.

Lá, ela será usada em passeios turísticos e como restaurante flutuante, razão pela qual também possui uma cozinha com padrão industrial a bordo – além de ar-refrigerado central e até camarotes para os tripulantes.

A viagem deve durar entre 35 e 40 dias, subindo o litoral brasileiro, com paradas para reabastecimento em Ilhabela, Salvador e Fortaleza.

Fabricação em série de caravelas

A bordo seguem oito tripulantes, quatro deles brasileiros, a começar pelo comandante contratado para a viagem. Também estrá o dono do barco, o empresário argentino Miguel Pedro Sheppard, que vive no Caribe e decidiu criar uma espécie de companhia de navegação só com réplicas de galeões e caravelas para atuar em ilhas da região, como Curaçau, Aruba, República Dominicana e Saint Marteen. Todos eles construídos em Santa Catarina.

No total, serão dez réplicas que imitarão naus famosas, das quais a caravela de Colombo é apenas a primeira delas.

Uma réplica de R$ 18 milhões

Em janeiro, começa a construção de outras duas réplicas, que levarão cerca de um ano para ficar prontas – o que deve gerar cerca de 800 empregos diretos e indiretos na região.

Em seguida, virão outras cópias de barcos famosos, como o Pérola Negra, inventado pelo cinema para ser usado na série "Piratas do Caribe", e o lendário galeão A Vingança da Rainha Anne, do sanguinário (e real) pirata Barba Negra, que barbarizou o Caribe no passado – este, com custo estimado em mais de cinco milhões de dólares, dois a mais do que custou a Santa Maria.

A construção da caravela custou perto de R$ 18 milhões, metade disso gasto com logística e pesquisas históricas, para que ficasse exatamente fiel na aparência a nau com a qual Colombo tocou as Américas – mas com recursos de um barco atual.

Fiel até nos detalhes

"Levamos quatro anos pesquisando arquivos históricos, documentos antigos e maneiras de transformar uma nau do século 15 em um barco seguro, mas mantendo a mesma aparência do passado", diz o catarinense Jorge Hosang, diretor da empresa H.ace, de Itajaí, que cuidou da importação de componentes e da logística para a construção da exótica embarcação – que, para os intrigados moradores da cidade, sempre foi chamada de "Caravela do Cabral".

"Durante a pesquisa, houve muita confusão, porque até os próprios registros históricos eram contraditórios sobre detalhes do barco. Como o gurupés, uma espécie de mastro pontiagudo que fica na proa, que também aparecia em alguns desenhos das duas outras caravelas da frota de Colombo, a Pinta e a Niña, mas que só a Santa Maria tinha, porque isso identificava, justamente, a nau capitânia da flotilha. De tanto me envolver com o assunto, acabei tomando gosto pela pesquisa e me apaixonando pelo barco", diz, orgulhoso, Jorge Hosang.

 

Uma caravela moderna

"O maior desafio foi construir uma réplica esteticamente fiel, mas dentro dos critérios da moderna engenharia naval, o que não é uma adaptação fácil", diz o catarinense. "O barco ganhou um par de 'asas' submersas, que ficam escondidas, mas garantem estabilidade ao casco, já que isso sempre foi o ponto fraco das antigas naus", explica.

O objetivo foi evitar problemas como os que aconteceram com a réplica da caravela de Pedro Álvares Cabral construída na Bahia, 20 anos atrás, para as comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil. A Nau Capitânia, de tão instável, sequer conseguiu fazer a viagem festiva prevista e hoje se encontra permanentemente parada no Espaço Cultural da Marinha (Rio de Janeiro) sem condições de navegar.

Por mar é mais barato

Já a caravela catarinense de Colombo pretende ir longe. E por seus próprios meios.

A começar pela longa viagem inaugural que começou a fazer de Itajaí até o Caribe navegando – quando o habitual seria o seu transporte a bordo de um navio de carga.

"Ficaria muito mais caro e não permitiria avaliar o barco em uma navegação de verdade", explica Jorge. "A Santa Maria ocuparia tanto espaço no navio que o custo do frete seria inviável. E ainda precisaríamos construir um suporte gigantesco para apoiá-la, além de a operação de embarque e de desembarque ser bem complexa. Daí, colocamos tudo isso no papel e chegamos à conclusão que era mais simples e barato enviá-la pelo mar, navegando o que, inclusive, é muito mais charmoso".

A saga do sino da descoberta

Assim sendo, quem estiver nas praias do litoral brasileiro nos próximos 30 dias pode ter a sorte de ver uma caravela passando no horizonte com todos os seus paramentos, inclusive brasões espanhóis decorando o casco (todos igualmente pesquisados) e até a réplica do lendário sino que teria sido usado por Colombo para anunciar a descoberta da América.

A peça cuja existência já rendeu muita polêmica, crises diplomáticas, cenas de filme de ação, e, até hoje, a suspeita de que tenha sido secretamente contrabandeada para os Estados Unidos e vendida – clique aqui para conhecer esta história  é tão interessante quanto a própria réplica do histórica nau feita em Santa Catarina, que, agora, segue para o Caribe, nostalgicamente navegando.

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.