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Histórias do Mar

Naufrágio histórico do século 18 irá para museu revolucionário na Holanda

Jorge de Souza

23/01/2021 04h00

Reprodução: TripAdvisor

Um audacioso projeto que une arqueologia e engenharia está sendo analisado, neste instante, na Holanda.

Trata-se do Docking the Amsterdam ("Atracando o Amsterdam"), cujo objetivo é remover, de maneira inédita, os restos naufragados de um dos mais famosos barcos da história holandesa, o Amsterdam, construído em 1748, do local onde se encontram, soterrados em uma praia da Inglaterra, e levá-los para a capital da Holanda, onde será construído uma espécie de museu ao vivo – e igualmente revolucionário – em torno dele.

Divugação ZJA

Resgatar um velho naufrágio e levá-lo para um museu, não tem nada de novo – e já foi feito diversas vezes. Mas não como este será feito.

O que torna o projeto holandês realmente inédito, e bem mais desafiador do que tudo o que já foi feito nesta área até hoje, é a maneira como as duas coisas (o resgate e o museu) serão executadas.

Bloco de areia com o navio dentro

De acordo com o projeto, o resgate do navio, que está semisoterrado por oito metros de areia na praia de Bulverhythe, na cidade inglesa de Hastings, não será feito escavando os sedimentos, procedimento habitual nesses casos, mas sim removendo o bloco inteiro de areia que o envolve, como quem mantém o torrão de terra em volta das raízes de uma planta ao mudá-la de vaso.

Divulgação ZJA

Em seguida – e ainda mais inusitado -, o tal bloco, contendo o navio inteiro dentro dele, será colocado em uma gigantesca caixa de aço, e transportado, semisubmerso, até o local onde será feito o trabalho de garimpagem histórica do que há no interior do seu casco.

E isso será feito diante dos visitantes do tal museu, que será construído na capital holandesa especialmente para receber o naufrágio do histórico barco.

Três razões para fazer isso

A decisão de remover, do litoral da Inglaterra para a capital da Holanda, o casco de um navio de 40 metros de comprimento com todos os sedimentos que estão dentro e ao redor dele – para, então sim, começar a escavá-lo -, tem múltiplos objetivos.

Um deles é o interesse histórico.

O Amsterdam, que não por acaso tem o mesmo nome da capital da Holanda, foi um navio que simbolizou a fase áurea das colonizações holandesas, e é tão representativo para os holandeses que há até uma réplica dele, em tamanho real, exposta no Museu Marítimo de Amsterdã.

Outro motivo é de ordem prática.

No local onde ele está soterrado, na beira da praia de Hastings, às margens do Canal da Mancha, o permanente sobe e desce das marés impede os trabalhos de escavação arqueológica, porque ora a parte de cima do esqueleto do casco (a única visível até hoje) está no seco, ora totalmente submersa.

Se fosse escavado ali mesmo, quando a maré subisse, toda a areia retirada seria trazida de volta. Seria como enxugar gelo.

O principal propósito de tão complexo projeto é mesmo o apelo turístico que o novo – e inédito – museu dedicado ao navio terá na cidade.

Pronto em 2025

Divulgação ZJA

O Docking the Amsterdam, previsto para ficar pronto em 2025, será o único museu do mundo onde os visitantes poderão acompanhar, em tempo real, os trabalhos de escavações dos arqueólogos no interior e exterior do navio, graças a passarelas na superfície e corredores submarinos equipados com grandes janelas, já que o intuito é que o navio permaneça submerso, como está há 272 anos.

Divulgação ZJA

A previsão é que os trabalhos dos mergulhados, pesquisadores e arqueólogos levem décadas para serem concluídos, o que permitirá aos visitantes irem descobrindo, aos poucos, e juntamente com eles, todos os detalhes e objetos contidos no navio, já que o seu interior está intacto, porque a areia impediu saques no passado.

Shipwreckmuseum Hastings

É certo que o interior do Amsterdam ainda contém objetos pessoais dos seus tripulantes e toda a carga que transportava, quando encalhou naquela praia inglesa, em 26 de janeiro de 1749.

"O Amsterdam oferece uma oportunidade única de voltar no tempo e testemunhar como os homens navegavam no século 18", defende o diretor do projeto, o arqueólogo holandês Jerzy Gawronski. "Este projeto não tem a ver a ver apenas com ciência e inovação. Tem a ver com mostrar o passado para as pessoas", define.

"Dois terços do barco estão perfeitamente preservados", garante o arqueólogo. "É o mais intacto navio histórico daquela época que pode ser minuciosamente explorado".

A história de um navio histórico

O Amsterdam foi o mais famoso navio da célebre Companhia das Índias Ocidentais (aquela, das aulas de história, recorda?), uma entidade criada por mercadores holandeses no século 17, que tinha por objetivo auferir lucros e, ao mesmo tempo, expandir a colonização holandesa, o que incluiu até Pernambuco, no Brasil.

Mas, ironicamente, encalhou e naufragou durante uma tempestade logo na sua viagem inaugural, quando navegava ao largo da costa inglesa, ao retornar da atual Indonésia.

O navio foi tão afetado pela tormenta que o seu capitão decidiu encalhá-lo propositalmente na praia, na esperança de retirá-lo depois.

Mas, com parte da sua tripulação doente (mais de 50 dos 330 tripulantes originais do Amsterdam já haviam morrido de febre amarela durante longa viagem), e outra bêbada, por conta do saque que muitos homens haviam feito na carga de vinho que o navio transportava, a fim de combater o medo durante a tempestade, não houve como salvar o barco.

Enterrado pela areia

Aos poucos, o sobe e desce das marés foi enterrando o Amsterdam na beira da praia, até que só restou visível a parte de cima do casco – mesma situação em que se encontra até hoje, quase três séculos depois.

Acredita-se que tudo o que havia no navio (carga, objetos pessoais, utensílios) permanece intacto dentro dele, o que torna o Amsterdam uma espécie de tesouro para os estudiosos.

Divulgação ZJA

Daí o interesse dos holandeses no audacioso projeto de remover o navio inteiro, do jeito que está, desde 1749, e transportá-lo submerso, para não danificar o casco,, a fim de permitir que a escavação seja feita em local mais adequado.

E, providencialmente, com mais apelo turístico.

Operação complexa

Para a complexa operação de resgate do navio, os técnicos pretendem usar grandes guindastes, que erguerão o casco aos poucos, bem como a areia que está dentro e em torno dele, até assentá-lo dentro da caixa de aço, para o transporte até a Holanda.

O simples contato da madeira do casco com o ar, após tantos anos soterrada debaixo d´água, poderia comprometer a integridade do barco. Daí a decisão de transportá-lo envolto pela mesma areia na qual jaz, há 272 anos.

Reações contrárias

Recentemente, uma operação parecida foi feita em uma praia da Nova Zelândia, envolvendo um barco que estava soterrado há um século e meio, a escuna Daring. E foi bem-sucedida.

Daring Rescue Group Facebook

Mas, ao contrário do Amsterdam, aquele barco não foi transportado dentro de um bloco sólido de areia para outro local, como se pretende fazer, o que torna a operação holandesa bem mais arriscada.

Além disso, os ingleses, obviamente, não veem com bons olhos a retirada do navio da praia de Hastings, porque os seus restos são o principal atrativo histórico da região, e atração de primeira grandeza para o acanhado museu marítimo local.

Os ambientalistas também protestam, porque escavar, retirar e transportar areia de uma praia para outro local afeta o equilíbrio ambiental dos dois locais.

Mas os criadores do projeto alegam que onde o naufrágio está seria impossível realizar os trabalhos de arqueologia – sem contar que o museu, idealizado pela empresa de arquitetura holandesa ZJA, teria que ser fincado em solo britânico e não holandês, o que não faria sentido, já que o projeto tem o total apoio da prefeitura de Amsterdã, interessada no que o novo museu representará para os turistas.

Um museu para um só barco

O que a capital holandesa busca com o projeto do resgate do navio e a criação de um museu submerso, é criar um atrativo turístico tão representativo para a capital holandesa quanto um museu semelhante que existe em Estocolmo, na Suécia, também dedicado a um só navio: o Vasa, uma nave de guerra do século 17, que também foi resgatado, inteiro, do fundo da baía da cidade, 333 anos após ter afundado.

Divulgação Vasa Museum

Desde que foi inaugurado, o Museu do Vasa é a principal atração turística da capital sueca, embora só exiba uma peça: o navio inteiro, em perfeito estado de conservação.

O Vasa afundou pateticamente minutos após ter partido do porto da cidade, na sua, também, viagem inaugural, o que se transformou em um dos maiores vexames da História marítima (clique aqui para conhecê-la).

Hoje, no entanto, é a mais famosa atração de Estocolmo.

Dentro e fora d´água

Com o Amsterdam, a prefeitura da capital holandesa espera que aconteça o mesmo.

Ou até mais, já que, além de poderem testemunhar as descobertas que os arqueólogos forem fazendo, os visitantes do novo museu também poderão "ver" um naufrágio do século 18, dentro e fora d´água.

E isso nenhum outro oferece.

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.