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Histórias do Mar

Por que ambientalistas são contra o afundamento de navios no mar brasileiro

Jorge de Souza

26/03/2020 10h20

Foto Max Glegiston/Divulgação Projeto Recifal

Caso mantenha a intenção de passar o próximo feriado da Semana Santa na ilha de Fernando de Noronha – apesar da recomendação do próprio Ministério da Saúde para que os brasileiros não saiam de casa, muito menos viajem – o presidente Jair Bolsonaro pode preparar os ouvidos para, quando chegar lá, ouvir severas críticas.

Tanto moradores, quanto ambientalistas estão contra duas decisões recentes do seu governo: a de estudar a liberação da visitação de navios de cruzeiro à ilha e a de promover o naufrágio proposital de embarcações na região, para incentivar o turismo submarino.

As duas propostas provocaram calafrios nos ambientalistas, porque impactam diretamente o frágil equilíbrio da ilha.

Segundo eles, os navios de cruzeiro despejariam, de uma vez só, uma quantidade de visitantes que a precária infraestrutura da ilha não comporta.

E os naufrágios intencionais, caso sejam mal conduzidos, como geralmente acontece, podem gerar um desequilíbrio total no ecossistema marinho da ilha.

(Crédito: Getty Images)

"O afundamento de embarcações para gerar atrativos submarinos em Fernando de Noronha pode até beneficiar o turismo de mergulho na ilha, mas um preço catastrófico para a natureza", alerta o biólogo pernambucano Pedro Henrique Pereira, diretor do Projeto Conservação Recifal, com sede em Pernambuco, mesmo estado ao qual a ilha pertence. "Não podemos permitir que isso aconteça".

Em todo o litoral brasileiro

No caso dos afundamentos propositais, a ilha que é considerada a mais bonita do Brasil não seria a única afetada, mas sim toda a costa brasileira, para desespero ainda maior do biólogo pernambucano.

Isso porque, o Programa Nacional de Revitalização do Ecoturismo Náutico, lançado recentemente pelo Governo Federal, e apresentado, na própria ilha, pelo presidente do Instituto Brasileiro do Turismo, Gilson Machado Neto, pretende afundar intencionalmente mais de 1 200 "equipamentos" no mar do litoral brasileiro. Entre eles, velhos navios, vagões de trens, estátuas enferrujadas e até pequenos aviões desativados.

O objetivo é incentivar o turismo subaquático, sobretudo em Pernambuco, onde já existe um Parque de Naufrágios, e onde as duas primeiras ações desse tipo já aconteceram: o afundamento de dois velhos rebocadores, no litoral sul do estado.

Mas foi um mau começo.

Os dois barcos foram afundados em uma área inadequada para mergulhos, quase na boca de um rio, onde a água é sempre turva.

"Nenhum turista vai querer mergulhar aonde não se enxerga nada debaixo d´água", diz um dos responsáveis pela maior operadora de mergulhos do estado. "Se a ideia era atrair mergulhadores, não adiantou nada".

Mas o que realmente preocupa os ambientalistas e cientistas marinhos na decisão do governo é o impacto que estes naufrágios terão na vida marinha de cada região. Eles alegam que, dentro da atual realidade brasileira, "onde muitas coisas são feitas sem o devido cuidado", a medida é "altamente perigosa".

Por dois motivos

Primeiro, porque pode contaminar o mar com coisas que, além de não pertencerem ao ambiente marinho, nem sempre costumam ser adequadamente limpas e livres de resíduos, antes de serem enviadas para o fundo.

E segundo porque, ao serem afundados, esses equipamentos podem beneficiar as espécies invasoras, em detrimento das nativas – embora um dos objetivos do governo com a medida seja justamente fomentar a vida marinha e tornar o fundo do mar brasileiro mais atraente aos turistas mergulhadores.

Foto Paula Raposo

"O nome disso é sucata e lugar de lixo metálico não é no fundo do mar", diz o biólogo Pedro Henrique, que é um especialista em recifes naturais e, também por isso, contrário a tese de que naufrágios fomentam a vida marinha.

"Não é verdade", garante. "Achar que um naufrágio aumenta a vida marinha é um equívoco, porque ele apenas atrai os seres que já existem espalhados na região. E, ao concentrá-los, tornam estes seres muito mais vulneráveis, tanto aos predadores quanto aos pescadores", diz o biólogo. "Os recifes artificiais, como são todos os naufrágios, criam a ilusão de gerar mais vida, mas é apenas porque o entorno dele ficou mais pobre", resume.

Carta enviada a Brasília

Por isso, no mês passado, logo após o anúncio dos naufrágios previstos para acontecer em Fernando de Noronha, 60 ambientalistas e cientistas marinhos de diversos estados redigiram uma Carta Aberta a Sociedade, alertando sobre os riscos do programa criado pelo governo federal e se opondo ao afundamento de qualquer coisa no mar brasileiro, "sem que haja um estudo prévio e um amplo debate acadêmico".

Agora, o documento será direcionado aos órgãos responsáveis em Brasília, na esperança de que o governo, ao menos, "discuta o tema com especialistas, antes de enfiá-lo goela abaixo da sociedade", como explica o biólogo, que torce para que as frequentes idas e vindas de Bolsonaro nas decisões do governo o façam rever também este caso.

O principal motivo

O que tanto preocupada os estudiosos na questão dos naufrágios artificiais é o favorecimento que isso pode criar às espécies invasoras no mar brasileiro, como o (lindo, mas terrível) coral-sol, uma espécie originária do Pacífico que chegou ao Brasil supostamente impregnado ao casco de navios, e aqui encontrou um ambiente propício para proliferar e aniquilar os corais nativos.

Este é o verdadeiro perigo.

O coral-sol, que mesmo quando não vem impregnado no casco dos barcos a serem afundados tende a ser fixar neles, porque aprecia metais lisos, já infestou descontroladamente trechos do litoral de Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia e Ceará.

Recentemente, o coral-sol fez o mesmo com os naufrágios que existem em Pernambuco, já tomados pelo invasor. Daí o temor dos ambientalistas de que isso também aconteça em Fernando de Noronha.

"Essa bioinvasão não pode chegar à ilha, que é um santuário marinho", diz o biólogo pernambucano, que torce para que o documento enviado à Brasília, e a provável visita do Presidente à Fernando de Noronha em duas semanas, quando o tema fatalmente voltará à tona, ajude a persuadir o governo a mudar de ideia.

"A ilha já tem muito problemas para ganhar mais esse", finaliza o biólogo pernambucano.

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.