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Histórias do Mar

Por que a Argentina metralha barcos chineses e o povo ainda aplaude?

Jorge de Souza

08/03/2019 09h00

Na última semana aconteceu mais um dramático capítulo da novela que, há tempos, envolve a pesca profissional no mar do sul da Argentina. No dia 2, outro barco pesqueiro estrangeiro invadiu as águas territoriais argentinas em busca de cardumes de uma espécie de lula que só existe ali.

O barco invasor foi detectado, alertado e intimado a deixar a região — o que, no entanto, não fez. Virou, então, alvo de disparos intimidatórios de fuzis de um navio da autoridade naval argentina encarregada de fiscalizar a região, justamente para impedir a entrada de barcos pesqueiros na faixa de mar que pertence a Argentina, o que vem acontecendo com absurda frequência.

A perseguição do navio de patrulha argentino GC-24 Mantilla ao pesqueiro chinês Hua Xiang 801 durou cerca de três horas e aconteceu a cerca de 360 quilômetros da costa, mas ainda dentro do mar territorial argentino.

Durante todo esse tempo, as autoridades argentinas tentaram deter o barco invasor, primeiramente com mensagens pelo rádio e sinais de alerta, em seguida com disparos. Até que o barco, que em momento algum respondeu aos chamados pelo rádio e seguiu navegando, escapou e se abrigou em águas internacionais, onde a Argentina não pode agir.

A ação foi filmada pela própria Prefectura Naval argentina, uma espécie de guarda costeira, como prova dos abusos que os barcos estrangeiros vêm cometendo nas águas daquele país.

No vídeo de outra interceptação, feita no mês passado, pode-se ouvir claramente os guardas alertando o pesqueiro, pelo rádio, em espanhol e inglês, sobre as represálias que ele sofreria.

Como não houve nenhuma resposta, foi dada ordem de disparo – feita, no entanto, em direção a partes "neutras" do barco, como a proa, onde não ficam pessoas, e as antenas, a fim de cortar as comunicações do pesqueiro com outros barcos invasores, já que eles invadem as águas argentinas em grupo, justamente para dificultar as ações de repressão.

O abuso chinês

No caso de sábado passado, o barco chinês navegava — e pescava — a cerca de um quilômetro da região limítrofe do mar territorial argentino, mas já dentro da Zona de Exclusão, onde não é permitida a atividade pesqueira de barcos estrangeiros.

Também havia desligado propositalmente o seu sistema de identificação automática, para não ser identificado e localizado, o que contraria as regras internacionais. Mas ele foi detectado por um avião patrulha argentino, que acionou o navio para a sua interceptação.

A ação foi aplaudida pelo povo argentino, já farto de ser vítima desse tipo de abuso, que vem acontecendo há mais de uma década.

"Os barcos estrangeiros, sobretudo do sudeste asiático, como China e Taiwan, ficam parados do lado de fora da Zona de Exclusão e, quando percebem que a fiscalização diminuiu, entram em nossas águas para pescar as lulas que só existem aqui".

Quem diz isso é o especialista argentino Milko Schvartzman, que garante que mais de um milhão de toneladas de lulas, avaliadas em cerca de 15 milhões de dólares, já foram capturadas ilegalmente pelos barcos estrangeiros em águas argentinas. "Quando eles são perseguidos, se refugiam em águas internacionais ou nos portos do Uruguai ou das Ilhas Malvinas", afirma.

No caso mais sério registrado até hoje, a Prefectura argentina supostamente chegou a afundar um barco pesqueiro também chinês, em março de 2016, pelo mesmo motivo – embora haja dúvidas até hoje se o barco não teria sido afundado pelos próprios chineses, que teriam abertos as válvulas do casco, para incriminar os argentinos por ação belicosa.

"Nossos disparos, com armas leves e sempre na parte do casco que fica acima da linha d'água, não seriam suficientes para afundar um barco que é quase um navio", explicou, na época, o chefe da entidade argentina.

Nos últimos doze anos, nada menos que 69 barcos estrangeiros de pesca foram capturados pelas autoridades argentinas após serem flagrados pescando nas águas do sul do país.

"Esses barcos, que têm capacidades industriais de captura de lulas, não só comprometem a fauna marinha como tiram o emprego dos pescadores argentinos, além de sua atitude de enfrentamento representar um inaceitável abuso", diz Milko Schvartzman. "Eles vêm até a Argentina com combustível subsidiado pelo governo chinês e tripulantes que trabalham em regime de semi-escravidão. Por isso, essa questão tem que ser tratada diplomaticamente, envolvendo instituições internacionais, como a ONU", completa.

Ataques entre eles também

Outro caso recente envolvendo a guerra pelas lulas argentinas aconteceu no mês passado, mas envolveu apenas dois barcos pesqueiros, que se atacaram mutuamente ainda em águas internacionais, próximas da Zona de Exclusão argentina.

Na ocasião, o barco espanhol Pesca Vaqueiro abalroou – e afundou – um pesqueiro chinês, quando disputava o mesmo cardume de lulas. Os 30 tripulantes do barco atacado foram resgatados por outros pesqueiros chineses, enquanto o barco espanhol, que pouco sofreu no episódio, seguiu navegando e buscou abrigo no porto de Montevidéu, para evitar retaliações.

O episódio fez lembrar o ataque de um barco de pesca também chinês contra um pesqueiro brasileiro ao largo da costa do Brasil, em novembro do ano passado, que só não terminou em tragédia porque os brasileiros conseguiram fugir, após terem o seu barco abalroado.

"Eles queriam matar a gente", contou, na ocasião, um dos pescadores brasileiros.

O ataque do barco chinês contra o brasileiro fez parte de outra guerra que vem sendo travada em algumas partes dos mares do planeta pela captura de outro ser marinho bastante cobiçado pelos asiáticos: o atum, que tal qual as lulas argentinas, já estão quase à beira da extinção por conta disso.

Depois dos últimos episódios, o governo da Argentina promete ser mais severo na fiscalização e repressão aos barcos invasores.

 

Imagens: Prefectura Naval argentina

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.