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Histórias do Mar

O navio que encalhou na praia de Santos 50 anos atrás e nunca mais saiu

Jorge de Souza

24/04/2021 04h00

50 anos atrás, um fato curioso entrou para a história da cidade de Santos, no litoral de São Paulo.

Na noite de 24 de fevereiro de 1971, uma tempestade de verão tornou o mar que banha a cidade agitado demais e fez romper os cabos que prendiam um pequeno navio recreativo, que fora transformado em boate, batizado com o nome Recreio.

Impossibilitado de reagir, já que não tinha mais motores, o peculiar navio, velho conhecido dos moradores de Santos, atravessou toda a baía à deriva, com três atônitos funcionários a bordo, até encalhar na beira da praia, onde imediatamente virou atração turística.

E um problema que dura até hoje.

Uma história interessante

Meio século depois, restos do navio – que antes de virar boate, foi um transatlântico chamado Carl Hoepcke, particularmente famoso em Florianópolis, onde transportava passageiros para os demais portos brasileiros – ainda podem ser vistos nas marés mais baixas, parcialmente soterrados na beira mar e levemente sinalizados, para que os banhistas menos avisados não se machuquem nos seus ferros retorcidos.

Fotos: Memoria Santista

"A história do Recreio é, no mínimo, interessante", diz o jornalista e pesquisador santista Sérgio Willians, presidente do Instituto Histórico e Geográfico da cidade e ex-diretor da Fundação Arquivo da Memória de Santos, que tinha apenas três anos de idade quando ocorreu o encalhe do navio na praia, deixando perplexos os moradores da cidade – que, de repente, ganharam um gigantesco intruso na paisagem, bem ao alcance das mãos dos banhistas.

E que jamais saiu de lá.

62 metros de comprimento

Nos dias subsequentes, diversas tentativas de arrancar o navio espetado na areia foram feitas.

Todas em vão.

O Recreio, de 62 metros de comprimento, não se movia nem quando puxado por mais de um rebocador ao mesmo tempo.

A cada tentativa, chegava mais gente para acompanhar os esforços, que nunca deram em nada.

Com isso, o exótico navio que não navegava e só abrigava festas e baladas, voltou a ficar famoso na cidade.

Mas, agora, por um motivo bem mais prosaico: recusava-se a sair da praia.

Até dinamite

Temendo pela segurança dos banhistas, já que o navio estava cravado no exato local onde crianças brincavam na beira d´água, e frequentemente invadido por curiosos e usuários de drogas, a Prefeitura de Santos passou a pressionar o dono do barco, o engenheiro naval russo, radicado na cidade, Wladimir Grieves, para que o tirasse de lá, de qualquer maneira.

E o foi o que ele fez.

Sabendo que o navio estava perdido, o dono ordenou que ele fosse depenado, a fim de aliviar peso e ajudar no trabalho dos rebocadores. E que fosse usada dinamite para desencalhar o casco. Foi o seu maior erro.

Não adiantou

O máximo que a dinamite conseguiu foi fragilizar a estrutura do navio, que, ao ser puxado, rasgou, feito uma folha de papel.

A parte de cima saiu inteira (e foi removida com a ajuda de boias), mas a de baixo continuou teimosamente travada na areia.

E não houve quem a tirasse de lá.

Engolido pela areia

Com o passar do tempo, a ação das marés acabou por encobrir o que restou do Recreio, até que ele sumiu por completo na areia, para alívio do dono do navio, da Prefeitura da cidade e dos banhistas da praia, que, até então, viviam se machucando nos escombros submersos.

Durante quase 40 anos, o Recreio ficou totalmente soterrado e passou a ser apenas uma curiosa história contada pelos velhos moradores de Santos. Até que…

No início da década passada, a dragagem do canal de acesso ao porto de Santos gerou uma alteração no fluxo de areia levado pelas marés para as praias da cidade e fez aflorar, de novo, os escombros do teimoso navio – feito um zumbi, que voltou para assombrar os banhistas.

Virou uma encrenca

Resignada, a Prefeitura se limitou a colocar estacas em torno das ferragens, e uma placa alertando para o perigo de tomar banho de mar naquele local.

Mas o problema permanece, meio século depois do encalhe.

"Os restos do Recreio são uma grande encrenca para a cidade", resume o pesquisador Willians, que preferia que o resiliente navio tivesse sido devidamente desencalhado, sem dinamite nem nada, na época do acidente.

Até porque, no passado, o Recreio havia sido um navio com alguma história, e merecia ser preservado.

Foi um transatlântico

Quando foi construído, em 1926, e batizado com o nome do empresário alemão-catarinense que o encomendara para o transporte de carga e passageiros de Santa Catarina, o Recreio, então chamado Carl Hoepcke, era o principal meio de ligação entre Florianópolis e o resto do país – uma espécie de transatlântico da ilha, com acomodações de Primeira Classe, e motivo de orgulho para os moradores da cidade.

Sempre que chegava ou saia do porto catarinense, as pessoas iam para a margem saudá-lo.

Foi assim por mais de 30 anos, até que um incêndio, em 1956, na partida do mesmo porto de Santos, decretou a sua aposentadoria como meio de transporte.

Ele, então, foi vendido para uma empresa de transporte de carga do Pará, e rebatizado Pacaembu.

Dez anos depois, o navio foi comprado pelo russo Wladimir Grieves, que tinha planos ambiciosos para o ex-transatlântico que virou cargueiro – ele agora viraria um navio (só) para festas, o Recreio.

Piscina em vez de motores

No lugar da casa de máquinas, Grieves mandou construir uma piscina, a chaminé virou caixa-d´água e a torre de comando foi transformada em mirante.

Todos os fins de semana, animadas turmas de turistas e moradores de Santos passaram a lotar o navio, já permanentemente ancorado em frente à cidade.

Até aquela noite tempestuosa, 50 anos atrás, quando o exótico navio-boate cruzou toda a baía e foi morrer na praia de Santos, onde virou uma dor de cabeça de já meio século.

"Em Floripa seria diferente"

"Se o encalhe tivesse acontecido em Florianópolis, tenho certeza que os catarinenses teriam dado um jeito de salvar o navio que tanto admiravam", garante o pesquisador Willians, que lamenta como tudo aconteceu e, agora, tenta manter viva a história do Recreio (bem como muitas outras do passado de Santos) em um site que ele criou, o Memória Santista, que pretende se transformar no principal acervo histórico da cidade – apesar das dificuldades financeiras do jornalista em mantê-lo.

"Saber sobre o passado da nossa cidade ajuda a entender o presente, como o próprio caso do Recreio, que atormenta os banhistas até hoje", analisa Willians.

Outro que sumiu e voltou

Mas o singular navio que decidiu morrer na praia não é o único caso do gênero na movimentada orla de Santos.

A menos de um quilômetro do local onde estão os seus escombros, outra embarcação, bem mais antiga e histórica, começou a aflorar sinistramente na areia da praia, meia dúzia de anos atrás, também por obra das marés.

Era um velho casco de madeira, de tamanho considerável, que deixou intrigados os moradores da cidade.

Entre eles, o arqueólogo Manoel Gonzalez, do Centro Regional de Pesquisas Arqueológicas de Santos, que começou a investigar o achado.

Mas foi o próprio Sérgio Willians que, ao que tudo indica, conseguiu identificar a embarcação, a partir de um antigo quadro (clique aqui para conhecer esta outra história, de outro barco que sumiu e ressurgiu na palpitante praia de Santos).

"O Recreio, todo mundo em Santos conhece. Mas esse outro barco ainda precisa ter sua identificação cientificamente comprovada, embora tudo indique que seja um veleiro do final do século 19", diz o abnegado pesquisador santista.

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.