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Histórias do Mar

Corpos encontrados em barco à deriva no CE ainda são mistério para polícia

Jorge de Souza

10/04/2021 04h00

Foto: Divulgação Polícia Federal

Dez dias atrás, pescadores brasileiros encontraram uma espécie de canoa à deriva no alto-mar, a cerca de 1 000 quilômetros da costa do Ceará, com três corpos, dois homens e uma mulher, em adiantado estado de decomposição dentro dele – além de uma carteira, um aparelho GPS, um relógio ordinário e intrigantes 27 aparelhos celulares.

 

Fotos: Divulgação Polícia Federal

Acionada, a Marinha recolheu o barco, os corpos e os pertences e os levou para perícia, pela Polícia, em Fortaleza, onde chegaram no dia seguinte, 1º de abril.

Desde então, o mistério continua: de onde veio aquele barco? Por que ele continha tantos aparelhos celulares? O que aconteceu com aquelas três pessoas? E, sobretudo, quem eram elas?

Ainda não há nenhuma resposta.

Até porque a investigação pouco avançou desde então.

Cruzou todo o Atlântico

A única coisa que a Polícia Federal, a quem coube a investigação, deduziu até agora é que, "muito possivelmente, as pessoas cujos corpos foram encontrados eram originárias da África" – uma dedução quase óbvia face ao que havia na carteira encontrada dentro no barco: dois cartões bancários, um de uma instituição financeira do Togo e outro do Mali, além de cédulas de uguia, moeda corrente da Mauritânia, francos CFA, usados em uma dúzia de países africanos, inclusive o próprio Togo e Mali, alguns dólares e euros – tudo em pequenas quantidades.

Além disso, o próprio local onde o pequeno barco, de não mais que quatro metros de comprimento, sem remos, velas, nem motor, foi encontrado já sugeria a sua procedência, porque é um sabido ponto de confluência de correntes marítimas que vêm da África para o Brasil.

O fato de o barco não apresentar nenhum meio próprio de locomoção deixa claro que ele só chegou ali, à deriva, por obra das correntes marítimas.

O que diz a Polícia

"A investigação está em andamento e estamos no aguardo dos laudos cadavéricos e da eventual extração de dados dos celulares e do GPS para que se comece um trabalho de cooperação policial internacional, para tentar identificar aquelas três pessoas", disse, em um comunicado a Nossa, o corregedor regional da Polícia Federal no Ceará, Paulo Henrique Oliveira Rocha, que está cuidado do caso  embora a necropsia dos corpos esteja a cargo da Perícia Forense do Estado do Ceará – Pefoce, que diz que ainda não concluiu os exames cadavéricos.

"Os corpos já passaram por exames de tanatologia forense (estudo científico das mortes), mas, devido ao avançado estágio de decomposição, e a complexidade do caso, um dos corpos agora passa por exames no setor de Antropologia Forense", disse o órgão, também através de comunicado, na última quinta-feira. "Os laudos só serão feitos só após serem concluídos todos os exames necessários".

A investigação avança na mesma velocidade em que aquele enigmático barco cruzou todo o Atlântico, durante meses, com três cadáveres e uma quantidade incomum de aparelhos celulares a bordo.

Pistas óbvias ainda não seguidas

Nem mesmo a análise dos aparelhos (que, muito provavelmente já não funcionam mais, por conta do contato com a água salgada, já que é impossível o interior de um barco tão precário ficar totalmente seco ao longo de tanto tempo no mar) foi concluída.

Tampouco os cartões bancários e dois números de telefones – um da França, outro da Espanha  que estavam em uma anotação dentro da tal carteira (que, no entanto, não continha nenhum documento das vítimas), até agora foram checados.

Tantos as contas bancárias quanto os dois números de telefones poderiam dar alguma pista sobre a origem, destino, identidade e propósito daquele grupo, que estranhamente portava 27 aparelhos celulares a bordo de um barco tão simplório.

Por enquanto, só há hipóteses. E todas com perguntas também sem respostas.

O que pode ter acontecido?

Uma das hipóteses é que os ocupantes do misterioso bote possam ter sido "desovados" no mar por uma embarcação maior, como forma de punição ou retaliação, o que explicaria a ausência de remos ou motor no pequeno barco, embora esses equipamentos possam ter caído no mar, durante a lenta travessia do Atlântico, mais tarde.

Ou, então, que já estivessem mortos quando isso aconteceu, já que a análise dos corpos ainda não concluiu se eles foram vítimas de algum tipo de violência.

Mas por que eles seriam abandonados no mar com tantos celulares, um GPS e até dinheiro na carteira?

Seriam ladrões em fuga?

Outra hipótese é que aquelas três pessoas possam ter sido vítimas de algum infortúnio quando navegavam (a queda do motor de popa no mar, por exemplo), sendo então abraçadas pela correnteza e vagado à deriva até o outro lado do oceano, onde já chegaram mortas há bastante tempo – tampouco se sabe se de fome, sede ou algum ato violento, já que a perícia também ainda não concluiu isso.

A Polícia também avalia a hipótese de que as vítimas pudessem ser imigrantes ilegais africanos tentando chegar a outro país, mas isso é pouco provável, uma vez que ninguém faria uma travessia dessas com um barco sem nenhum meio de propulsão.

Também analisa a possibilidade de que eles estivessem envolvidos com o "tráfico de pessoas", embora isso soe menos plausível ainda, porque, se fossem vítimas, não teriam todos aqueles celulares no barco; e, se fossem os próprios traficantes, não usariam um bote tão precário, sem sequer motor.

A única certeza é que não se tratavam de pescadores nem náufragos, porque, nos dois casos, não haveria explicação para tantos celulares no barco.

Mas, piratas (como genericamente são chamados os que atacam barcos no mar), traficantes (o que explicaria os dois números de telefones europeus) ou simples ladrões ordinários (de dinheiro e celulares, por exemplo), talvez…

E isso explicaria a variedade de moedas que havia na carteira encontrada no barco.

Vieram com a correnteza

Também contribui para esta hipótese o fato de a Corrente Equatorial Sul, que cruza o Atlântico, da África até o Nordeste brasileiro (onde se divide em duas, e uma delas segue justamente na direção do Ceará, onde o barco foi encontrado), varrer boa parte da costa africana, inclusive o tenebroso Golfo da Guiné, onde casos de pirataria no mar só fazem aumentar.

Mas qual ladrão usaria como meio de fuga um barco a remo ou sem motor?

Aguardando as necropsias

"Será também investigado se havia envolvimento deles em alguma atividade criminosa", diz o delegado da Polícia Federal encarregado do caso. "Todas as linhas de investigação começarão a ser confirmadas ou afastadas após os resultados das necropsias e das extrações de dados dos equipamentos colhidos no barco. Estamos aguardando", completa o comunicado.

Enquanto isso, segue o mistério: a quem pertenciam aqueles três corpos que foram achados no mar e por que eles estavam lá?

Por enquanto, a Polícia não tem nenhuma ideia de quem eles eram

Um caso igual, sem solução

Não foi a primeira vez que barcos vindos da África à deriva vêm dar no litoral brasileiro.

Nem a primeira vez que chegam trazendo apenas cadáveres, que acabam não sendo identificados.

A combinação entre a ineficiência das polícias, tanto do Brasil quanto da maioria dos países africanos, aliada a carência de informações sobre os desaparecidos no mar (quase sempre humildes pescadores, cujo desaparecimento nem chega a ser notificado às autoridades), faz com a esmagadora maioria dos casos jamais seja esclarecida.

Um dos casos mais recentes do gênero – e que, também, jamais teve uma solução  aconteceu em março de 2014, na costa do Amapá, quando duas ossadas humanas foram encontradas dentro de um barco igualmente precário – não mais que uma canoa.

Apesar de alguns detalhes daquela embarcação até permitirem meios para uma investigação mais profunda, nada foi feito e o caso acabou sendo arquivado.

E os restos daqueles dois homens, jamais identificados, esquecidos em um depósito qualquer da Polícia – clique aqui para conhecer este caso, que ficou conhecido como "O Barco das Ossadas".

No caso do bote achado no mar cearense na semana passada, as pistas são, ao menos, mais fartas.

Mas precisam ser devidamente investigadas, para que este não vire apenas mais um caso de algo trazido pelo mar e jamais explicado.

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.