Topo

Histórias do Mar

A ilha infestada de gatos selvagens que virou um problema para uma cidade

Jorge de Souza

27/03/2021 04h00

Nos últimos anos, uma selvagem e desabitada ilha do distrito de Itacuruçá, na Baía de Sepetiba, no litoral sul do Rio de Janeiro, tem virado notícia – e até atração turística por conta dos principais seres que hoje a ocupam: os gatos.

Centenas de gatos que, na luta pela sobrevivência em uma ilha desabitada, se tornaram perigosamente selvagens.

Segundo estimativas, já que é impossível contar quantos felinos atualmente habitam aquela ilha, que tem mais de cinco quilômetros de circunferência, mais de 300 gatos vivem hoje na Ilha Furtada, que, justamente por conta disso, passou a ser muito mais conhecida na região como a "Ilha dos Gatos".

E justamente por causa deles, se tornou um grande problema – tanto para os animais quanto para as pessoas que tentam achar uma solução para eles.

População só faz aumentar

Apesar dos esforços isolados de algumas ONGs, a população dos gatos confinados na ilha não para de aumentar.

Por dois motivos: a procriação descontrolada dos animais, que, por conta da quantidade, as ONGs não dão conta de capturar e castrar na mesma velocidade com que eles procriam, e porque pessoas continuam descartando na ilha os gatos que não querem mais ter em casa.

"A Ilha dos Gatos virou um problema também para o município" diz a secretária de Saúde de Mangaratiba, Sandra Castelo Branco, que garante que a prefeitura da cidade está tentando resolver o problema, tanto dos animais que já existem na ilha quanto do crescimento populacional descontrolado deles em um ambiente onde simplesmente não deveria haver gato algum já que gatos não são animais nativos da ilha, muito menos silvestres.

Ninguém sabe ao certo como tantos gatos foram parar naquela ilha. Mas é certo que eles foram levados para lá. Até porque gatos não gostam de água nem de nadar.

Como começou o problema

Uma das teorias é que, nos anos de 1950, uma família teria pensado em ocupar a ilha e para lá levado alguns gatos. Mas o plano não deu certo e eles retornaram ao continente, deixando, no entanto, os animais para trás. E eles teriam começado a procriar.

Outra versão prega que, no passado, um casal de gatos teria pulado e fugido de um barco que atracou na ilha, dando início ao mesmo processo.

Ou os dois casos podem ter ocorrido.

Nenhum deles, no entanto, teria conseguido fazer com que os gatos proliferassem tanto.

O verdadeiro motivo

O real motivo para haver tantos gatos na ilha é que, há bastante tempo, moradores da região passaram a usar a Ilha Furtada como ponto de descarte de gatos domésticos não mais desejados e, em busca de alimento, eles se tornaram selvagens.

"Sozinhos, aqueles gatos não chegaram ali. Isso é certo", diz a fundadora da associação protetora dos animais Veterinários na Estrada, Amélia Oliveira, que monitora a situação da Ilha Furtada há alguns anos

"Quem passa de barco e vê tantos gatos na costeira da ilha fica estimulado a soltar lá os que não quer mais", lamenta Amélia, que se baseia em uma análise científica para comprovar isso.

"É possível provar que novos gatos continuam sendo introduzidos na ilha através das alterações nos padrões de cores e espécies dos filhotes. E isso só pode ser fruto da chegada de ´novos moradores´ na ilha", explica a veterinária, que completa:

"Como se não bastasse os filhotes que nascem em ritmo acelerado, porque gatas entram no cio quatro vezes por ano, as pessoas continuam descartando animais na ilha, apesar das campanhas contra essa prática que algumas ONGs tentam fazer na região. É revoltante", diz.

Animais irrecuperáveis

De tempos em tempos, a Veterinários na Estrada faz ações de captura e castrações de gatos na ilha, para tentar amenizar o problema.

Nelas, filhotes são resgatados para futuras adoções, mas só alguns poucos gatos adultos conseguem ser capturados, para serem castrados e, depois, devolvidos à ilha.

Mas por que devolvê-los à ilha, se já existem gatos demais lá?

"Por que, infelizmente, os gatos adultos já estão selvagens demais para serem domesticados", explica Andreia Mendes, criadora da ONG Resgatinhos, de Mangaratiba, que também resgata filhotes na ilha e os traz para o continente, para serem adotados.

"Mas só trazemos os filhotes, porque não há mais como socializar os gatos adultos, porque eles se tornaram perigosos", garante Andreia, que sente isso de perto, todos os dias, desde que trouxe uma gata adulta da ilha, para tratamento em sua casa.

"Ela já está aqui há mais de um ano e ainda avança sobre mim e os demais gatos. Virou um felino selvagem de fato".

Dar comida ou não?

Desde que a presença de gatos na ilha começou a ser notada, algumas pessoas passaram a levar comida para os animais.

Inclusive turistas que fazem passeios de barco na Baía de Sepetiba, já que a ilha acabou virando uma atração turística.

Também os pescadores, de vez em quando, passam por lá e atiram peixes nas pedras da costeira (a ilha não tem praias; só mata fechada), que são avidamente disputados pelos gatos.

Mas a questão da alimentação dos gatos confinados na ilha é um dos pontos mais polêmicos do caso.

"Sou contra alimentá-los", diz a secretária de saúde de Mangaratiba, Sandra Castelo Branco.

"Fazer isso é uma maneira de estimular o surgimento de mais gatos, porque as pessoas vão se sentir ainda mais estimuladas a soltar animais na ilha, sabendo que eles serão alimentados", explica a secretaria, que completa:

"Adoro bichos, mas, sob o ponto de vista da saúde pública, que é a minha pasta, é preciso também considerar que aqueles animais podem transmitir doenças, já que não são tratados", explica.

"É preciso pôr um fim nisso"

Mas a secretaria, mesmo sendo contraria a todos que cuidam dos gatos na questão da alimentação (e até a outra secretaria da própria prefeitura, a do Meio Ambiente, que garante que "irá iniciar um trabalho permanente em prol dos gatos que estão lá"), concorda que é preciso pôr um fim no descarte de novos animais na ilha.

"Já mandei ofício à Marinha, pedindo para patrulhar a ilha e impedir que novos animais sejam deixados lá pelos barcos que passam", diz a secretaria Sandra.

Mas a proximidade da ilha com o continente não ajuda muito.

Bem pertinho do continente

A Ilha Furtada, que, tempos atrás, chegou a ser posta à venda por R$ 60 milhões (embora o seu dono seja desconhecido, nem jamais tenha ocupado a ilha), fica a apenas 15 minutos de barco de Itacuruçá.

"É muito fácil alguém pegar um barquinho e ir até lá para desovar os bichos, sem que ninguém veja", diz o pescador e marinheiro Mauricio Nunes, que, juntamente com um amigo, há mais de dez anos, leva comida semanalmente para os gatos da ilha.

E também água, já que a ilha não tem nascentes de água doce.

"Não fosse a água e comida que levamos, eles certamente morreriam, porque não há nada disso na ilha", diz Mauricio, que já resgatou até cachorros abandonados na Ilha Furtada.

"As pessoas não têm coração", lamenta.

Visão equivocada

"As pessoas que soltam os animais na ilha pensam que ali eles viverão melhor, porque terão liberdade na natureza, mas é justamente o contrário, porque ficarão confinados pelo mar e tendo que disputar água e comida com muitos outros gatos além de serem predados pelos lagartos que habitam a ilha", diz Andreia, da ONG Resgatinhos, que defende incondicionalmente os gatos.

"Os gatos da ilha não são selvagens. Eles se tornaram selvagens e passaram a caçar as aves e outros animais da ilha por uma questão de sobrevivência", diz a responsável pela ONG.

Única solução

Por conta de suas ações em favor dos animais, Andreia, com frequência, é colocada contra a parede.

"Tem gente que aparece aqui na ONG com um gato que não quer mais e diz que, se a gente não ficar com ele, irá soltá-lo na ilha. Quer dizer: a ilha virou ´solução` para o problema de quem não quer mais ficar com o gato que tem", lamenta a cuidadora, que, tal qual todos os envolvidos no caso, inclusive a prefeitura da cidade, só vê uma saída: capturar, castrar e devolver todos os gatos para a ilha (uma vez que eles não podem mais conviver com pessoas, nem com outros gatos), mas com a certeza de que não irão mais se reproduzir.

"Com o tempo, após cumprirem o seu ciclo de vida, os gatos irão morrer naturalmente e a fauna silvestre se recuperará, porque os gatos já praticamente baniram as aves e outros pequenos animais da ilha, gerando um desequilíbrio ambiental", explica a veterinária Amélia, da Veterinários na Estrada.

"Mas isso só acontecerá se as pessoas pararem de deixar novos gatos lá. Senão, o problema jamais acabará", completa.

Uma Ilha dos Gatos com outra história

Embora aparentemente antagônica, a ligação entre gatos e ilhas é bem mais comum do que parece.

Não são poucas as ilhas que possuem bichanos domésticos vivendo nelas – a diferença está no fato de que elas são habitadas e não apenas pelos gatos.

Curiosamente, porém, a única ilha do litoral da região sudeste que possui "gatos" até no nome, jamais teve gato algum – embora tenha uma história ainda mais interessante, ligada ao seu passado.

Reza a lenda que a Ilha dos Gatos, no litoral norte de São Paulo, teria pertencido ao milionário americano Nelson Rockfeller.

Não foi verdade.

Mas, também, nunca deixou de ser totalmente mentira que ela teve algo a ver com o empresário que chegaria a ser vice-presidente dos Estados Unidos – clique aqui e confira esta interessante história.

 Felizmente, bem menos dramática que a dos gatos de Mangaratiba, confinados em uma ilha deserta.

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.