Topo

Histórias do Mar

Barcos que voam começam competição mais antiga do mundo, na Nova Zelândia

Jorge de Souza

09/03/2021 10h37

Foto: divulgação Luna Rossa Team

Após dias de adiamento, por conta do lockdown decretado na principal cidade da Nova Zelândia, Auckland (após o surgimento de um – apenas um! – caso de covid-19, o que ilustra bem o abismo sanitário que separa o Brasil dos países que realmente levam a pandemia a sério), começa amanhã (esta madrugada, no Brasil) a disputa da 36ª edição da America's Cup, a mais antiga competição do mundo, entre todas as modalidade esportivas, que existe desde 1851, e é disputada há mais tempo do que as Olimpíadas modernas.

Nela, apenas dois barcos (o do atual detentor da Taça, a equipe neozelandesa Emirates, e o seu desafiante, o time italiano Luna Rossa, que venceu as eliminatórias contra os barcos dos Estados Unidos e da Inglaterra) se confrontam, numa série de 13 regatas. Vence a Copa, que só acontece de quatro em quatro anos, quem primeiro atingir sete vitórias.

Foto: divulgação Emirates Team

Uma competição entre apenas dois barcos parece monótono? É porque, talvez, você não saiba sobre quais barcos estamos falando…

Fórmula 1 da vela

Os barcos que competem na America's Cup são o que mais veloz o homem já inventou para navegar à vela.

São veleiros de Fórmula 1, a começar pela aparência, repleta de asas, e capazes de beirar os 100 km/h na água.

100 km/h parece pouco?

Pois saiba que é quase dez vezes mais rápido do que um veleiro convencional consegue navegar, e uma marca impressionante para um barco que é movido apenas pelo vento – e que consegue navegar mais rápido do que o próprio meio que o move.

Este ano, o show tecnológico dos barcos da America's Cup é ainda maior, porque os veleiros escolhidos para a disputa (ambos iguais, pelo menos nos tamanhos e premissas) são os revolucionários AC75, que medem perto de 23 metros de comprimento e são uma extraordinária mistura de barco e avião.

Foto: divulgação Emirates Team

 

Eles não apenas navegam. Eles voam sobre o mar.

Como asas de avião

Graças a um de par de "asas", que mais parecem garras, nas laterais do casco, chamadas de hidrofólios, os barcos desta edição da America's Cup, passam mais tempo planando no ar do que tocando a superfície do mar.

Só a parte inferior das tais asas ficam em contato com a água, não o barco em si, que flutua inteiro a quase dois metros da superfície feito um avião de verdade.

Tanto que ao criarem este tipo de veleiro, os projetistas foram buscar a ajuda de engenheiros da indústria aeronáutica, já que os hidrofólios estão muito mais para asas de um avião do que para componentes habituais de um barco à vela.

Eles têm, por exemplo, "flaps", como as asas dos aviões, para controlar a "altitude" da navegação – se mais alto ou mais baixo, em relação a superfície do mar.

As asas-garras dos AC75 também atuam como substitutos da quilha, componente submerso que todo barco a vela possui, para dar equilíbrio ao casco e contrabalançar a inclinação gerada pela ação do vento nas velas.

Ao penetrarem na água, as pontas das asas fazem, também, o papel de quilhas. Nunca se viu nada igual.

Pra frente, pros lados e pra cima

"Estes veleiros são uma maravilhosa aplicação prática das leis da física, porque, além do movimento longitudinal e lateral, eles também sobem e descem, acrescentando assim um terceiro componente na navegação", vibra o velejador e físico ítalo brasileiro Elio Somaschini, que, apesar da nacionalidade italiana, garante que irá torcer apenas pela "evolução do esporte" na competição que começa hoje a noite.

A grande vantagem disso tudo é o desempenho que os barcos alcançam.

Sem o atrito do casco com a água, a velocidade aumenta barbaramente, o que é fundamental em uma competição onde vence quem for o mais rápido. E ponha rápido nisso!

Quebrarão os 100 km/h?

Em paralelo à disputa pela vitória na série de regatas que começarão nesta madrugada (com transmissão ao vivo, a partir da meia-noite, pelo YouTube, Facebook e, também, no site da competição, o www.americascup.com; além do canal ESPN, com comentários de Torben Grael), um outro objetivo também estará em jogo nas competições desta America's Cup: tentar alcançar a mitológica – e, até hoje, inatingível por barcos deste porte – marca dos 100 km/h, ou 54 nós de velocidade.

Os neozelandeses da equipe Emirates, porém, já chegaram perto disso.

No final do ano passado, durante testes com o barco que usarão nesta America's Cup, eles atingiram 94,4 km/h (ou 51 nós de velocidade), em um dia de fortes ventos, já que os barcos à vela dependem fundamentalmente da força da natureza para se movimentar.

Vai depender da natureza

"Se os ventos ajudarem, podemos ver cair também esta barreira histórica", diz Somaschini, que, também só por isso, não arrisca um palpite sobre qual barco vencerá a disputa.

"Se os ventos oscilarem muito ao longo dos dias de competição, acredito que o barco italiano Luna Rossa vence a Copa. Mas, se predominarem ventos acima dos 15 nós, ou cerca 27 km/h, ganham os neozelandeses", arrisca o especialista, que completa:

Foto: divulgação Luna Rossa Team

 

"O barco dos italianos é um Porsche. O dos neozelandeses, uma Lamborghini. Ambos de altíssima performance, mas com características diferentes", compara o físico que também é velejador.

Disputa difícil

O duelo entre neozelandeses e italianos nesta edição da America's Cup reeditará o confronto de 21 anos atrás, quando equipes dos dois países também se enfrentaram, com a acachapante vitória neozelandesa em todas as regatas.

Por isso, para os italianos, que nunca venceram a America's Cup, mas se credenciaram para a disputa após massacrarem os barcos dos Estados Unidos e da Inglaterra nas preliminares, chamada de Copa Prada, que terminou dias atrás, esta nova disputa é, também, uma chance de revanche.

Mas não será fácil.

O vexame inglês

A Nova Zelândia já venceu a America's Cup três vezes e tem o apoio total da torcida, já que, como manda o regulamento da competição, o detentor da Taça escolhe não só o tipo de barco a ser utilizado, mas também o local das regatas, que serão realizadas na baía de Auckland, com uma plateia estimada de centenas de barcos, já que a vela é o segundo esporte mais popular do país, atrás apenas do rugbi.

Já os ingleses, tal qual os americanos, voltaram para casa mais cedo, totalmente frustrados.

Para os ingleses, a derrota para os italianos na final das eliminatórias foi um balde água congelante nos planos de recuperar a lendária Taça, que eles mesmo criaram no passado, mas que a perderam 170 anos atrás. E nunca mais recuperaram.

O barco que deu origem a tudo

Quando começou a ser disputada, ainda na metade do século 19, a America´s Cup tinha um significado político.

Os Estados Unidos haviam se tornado independentes da Inglaterra apenas 75 anos antes, e os americanos queriam mostrar que eram melhores que os ingleses justamente em um dos esportes mais populares entre os britânicos: o iatismo.

Para isso, construíram um veleiro, o America, e o levaram para a Inglaterra, para uma disputa contra barcos ingleses, que terminou com um resultado surpreendente (clique aqui para conhecer esta história, que acabou gerando a mais antiga competição do planeta até hoje).

Consta que a própria Rainha Victoria, da Inglaterra, presente ao evento, acabaria definindo, involuntariamente, o espírito da competição, ao perguntar a um dos seus súditos qual barco havia chegado em segundo lugar.

Ao que ele respondeu que "não havia segundo colocado" – porque só o vencedor importava.

E vai ser assim, mais uma vez, na edição que começa nesta madrugada.

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.