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Histórias do Mar

Brasileiro relembra momentos de pânico em navio que tombou no mar

Jorge de Souza

06/02/2021 04h00

Divulgação

Em 27 de outubro de 2012, os ocupantes do navio Grand Holliday, que fazia cruzeiros pelo Mediterrâneo, viveram momentos de pânico. Durante uma tempestade, viram o grande transatlântico tombar no mar e assim ficar por um bom tempo até retornar à posição normal – um fato extremamente raro e perigoso.

Entre eles, estava o brasileiro Andreas Martorelli, que trabalhava no navio como fotógrafo.

Reprodução YouTube JCP

Esta semana, com a notícia de que o mesmo transatlântico chegou ao maior desmanche de navio do mundo, na praia de Allang (Índia) para ser demolido, o ex-tripulante brasileiro do ex-Grand Holliday recordou não só os momentos de horror que passou quando o navio "deitou" no mar, como, também, relembrou o quão estressante era a vida a bordo para os tripulantes, como ele conta neste depoimento abaixo.

A embarcação, que chegou a fazer temporadas no Brasil e, no passado, também operou sob o nome Carnival Holliday, hoje está sob o nome Magellan, após ter sido vendida a uma companhia que faliu durante a pandemia.

"Uma tensa experiência"

"Em 2012, eu tinha 26 anos e estava em busca de viver novas experiências e me aventurar pelo mundo. Foi quando surgiu a oportunidade de trabalhar, como fotógrafo, em um navio de cruzeiros, na Europa: o Grand Holiday. Larguei tudo para trás – o trabalho como arquiteto, os amigos, a família, a vida confortável que levava no Brasil – e embarquei no navio.

Cheguei bastante entusiasmado, aberto a conhecer pessoas e aprender o novo trabalho. Mas desde que pisei no Grand Holiday e fui recolhido pelo chefe do setor de fotografia, um indonésio chamado Puto (!), comecei a me dar conta que as coisas não seriam exatamente tão agradáveis assim.

'A vida como tripulante de um navio cruzeiro é bem diferente da que temos em terra firme. E, também, da que levam os passageiros'.

'Próprias leis'

Além de questões óbvias, como assimilar infinitas regras, seguir hierarquias e fazer seguidos treinamentos, o que mais me assustou ao chegar foi logo perceber que toda minha noção de justiça, direitos e ética tinha valor nulo ali dentro. Nossa mini-cidade flutuante tinha suas próprias leis. Prevalecia um jogo sujo de poder, ego, interesses e ameaças.

Assim como em qualquer comunidade, a do navio desenvolveu seu próprio sistema de corrupção, apelidado de 'Máfia'. A prática do escambo prevalecia. Isso incluía produtos, favores, serviços e também status (algo essencialmente importante para a sobrevivência a bordo). Cada um fazia sua troca pelo que tivesse para oferecer. A mistura de diferentes nacionalidades, idiomas e culturas também tornava as relações de convívio bastante problemáticas.

'Eu cheguei no navio com valores normais para a nossa sociedade. Mas, logo na primeira noite, enquanto dormia, entraram na minha cabine e roubaram minha mala'.

'Achando um jeito de sobreviver'

Depois, durante o meu primeiro mês de trabalho, fui constantemente assediado, ameaçado e punido pelo meu chefe indonésio, de nome quase impronunciável.  Com o passar das semanas, fui perdendo a ingenuidade. E lá pelo segundo mês a bordo, só queria encontrar uma maneira de sobreviver ali dentro.

Mas nem todos os momentos eram ruins. Havia as happy hours, na área reservada aos tripulantes, que chegavam a ser animadas. E, também, os contatos frequentes com os passageiros, ainda mais no meu caso, que os fotografava. Além disso, mesmo entre os tripulantes, apesar das diferenças, surgiam 'amizades', que ajudavam a superar os meses de confinamento a bordo. Era uma relação dicotômica.

 'Como em um Big Brother'

Naquela época, os smartphones ainda estavam engatinhando. No navio, nós tínhamos acesso à internet, mas custava bem caro. Coisa de quase R$ 200 a hora. E telefone, mais caro ainda. Por isso, quase não tínhamos contato com a família, nem com o mundo exterior. Só quando o navio parava em algum porto e recebíamos autorização para desembarcar, atualizávamos as notícias e mandávamos mensagens para a família.

'No navio, o confinamento era intenso, e, após um tempo, isso impactava a nossa saúde mental'.

Vivíamos confinados naquela 'ilha de ferro', convivendo a maior parte do tempo com os mesmos tripulantes e falando sobre os mesmos assuntos, o tempo todo – quase sempre, falando dos outros, na mais pura fofocagem. Era quase como um Big Brother. Só que não era um jogo.

'Queria que ele afundasse'

Depois de um tempo, eu já não conseguia lembrar direito como era a vida fora do navio, o cheiro das ruas etc. Uma sensação bastante estranha.

'Tinha dias que o meu nível de estresse chegava a níveis tão elevados, que, tomado pela raiva, eu desejava que aquele navio afundasse – porque acreditava que daria um jeito de me salvar. E isso quase aconteceu mesmo'.

'O dia do incidente'

No dia 27 de outubro de 2012, o tempo estava horroroso – muita chuva, muito frio e muito vento -, no local onde navegávamos, na costa da França. Por causa do mau tempo, todos os navios haviam cancelado suas saídas do porto. Menos o Grand Holiday.

Nosso capitão decidiu seguir viagem, e logo o vento furioso passou a ser a principal assunto a bordo. Mesmo entre os tripulantes, supostamente acostumados a aquele tipo de situação. Mas eu não.

Decidi, então, ir lá fora, 'sentir' o tal vento do qual tanto se falava nos corredores dos alojamentos. Subi até o último deque, abri a porta e fui atirado longe, feito uma folha de papel. Minha gravata foi arrancada, com nó e tudo, e voou para o mar.

'Nunca vi nada igual. Voltei correndo para dentro do navio. E tão assustado quanto os passageiros'.

 'Cenário de horror'

O Grand Holiday era um navio pequeno, com capacidade para 1 500 passageiros e 600 tripulantes. Além disso, era antigo, já defasado e, para completar o quadro desfavorável, estava com um estabilizador quebrado. Isso fazia com que ele balançasse bem mais que o habitual.

Ele já saiu do porto adernado, por causa do vento forte. E o balanço e a inclinação foram aumentando ainda mais. Copos passaram a despencar das prateleiras, mesas deslizavam nos salões, passageiros não conseguiam caminhar, caiam e rolavam pelo chão. Os mais idosos, com peles e ossos delicados, passaram a se machucar gravemente, em tombos assustadores. Um horror.

'A cada nova balançada, a inclinação do navio ficava mais acentuada. Até que, no ápice da tormenta, o Grand Holiday sofreu um golpe ainda mais violento do vento e tombou no mar'.

O alarme disparou no navio inteiro, o que significava que um dos estabilizadores havia saído completamente d´água. Ou seja, o navio estava 'deitado' no mar. Pior que isso, só se já tivesse afundado. E foi por pouco que isso também não aconteceu.

 'O chão virou parede'

Até então, nós éramos obrigados a participar de repetitivos exercícios de treinamento, que simulavam situações de emergência. Mas, na hora do pânico, eles de nada adiantaram. Foi um desespero só, com gente tentando correr para todos os lados, mas sem conseguir dar um passo, porque o chão virara parede e as escadas perderam totalmente o propósito.

Lembro que sai me arrastando pela parede/assoalho, para tentar ajudar os passageiros feridos. Mas tudo acontecia de maneira desordenada e jamais ensaiada. Ninguém sabia o que havia acontecido, nem o que deveria ser feito.

'Na hora, me arrependi daquele meu desejo de dias antes'.

'Minimizando as consequências'

Não consigo lembrar quanto tempo durou o desespero. A memória humana edita trechos para nos proteger, eu acho. Mas só depois do que me pareceu uma eternidade, o navio começou a voltar a posição normal, deixando a bordo um cenário apocalíptico. Coisas quebradas, móveis empilhados, cabines inundadas e muita gente chorando, em pânico e machucada.

Uma tripulante espanhola, que eu conhecia bem, teve a perna esmagada por um freezer, que deslizou sobre ela quando o navio deitou no mar. E havia rumores de que um passageiro idoso havia morrido, mas isso jamais foi confirmado. A empresa dona do navio tratou de minimizar as consequências do incidente. Naquela noite, fomos dormir com fome, porque a cozinha do navio ficou impraticável. E os pratos do jantar, espalhado pelo chão dos comedores.

'Nunca mais voltei'

O incidente foi bastante traumático para passageiros e tripulantes. Muitos optaram por desembarcar em seguida e voltar para casa. Eu fiquei mais dois meses, até que cheguei no meu limite emocional. Já tinha até planejado uma fuga. Iria arranjar um pretexto para desembarcar durante uma das escalas, e sumiria. Mas acho que eles pressentiram isso e me dispensaram – tanto das funções de fotógrafo, quanto do próprio emprego. Desembarquei, feliz, após nove meses de vida a bordo.

Uma vez livre do tormento diário de ter que ficar fazendo alianças e acordos o tempo todo, até senti falta dos momentos legais que passei no navio. A empresa também me elogiou bastante, e, depois, até tentou me convencer a voltar a trabalhar no Grand Holiday. Agradeci, mas nunca mais voltei. Certas experiências basta uma vez na vida".

Sem poder dar adeus ao navio

Após desistir da experiência e da carreira como tripulante de navio de cruzeiro, Andreas Martorelli voltou para São Paulo, onde vive atualmente.

Ao saber que o navio que lhe serviu de casa e local de trabalho durante aquele período começará a ser demolido esta semana, em um miserável estaleiro da Índia, ficou entristecido.

"Sou um cara nostálgico e apegado a tudo sobre o meu passado. E embora aquela experiência no navio tenha sido bem intensa, em todos os sentidos, sempre alimentei o desejo de voltar a visitá-lo, o que, agora, não será mais possível".

No total, Andreas passou nove meses trabalhando a bordo do Grand Holliday – quase nada perto de outros tripulantes, que passam anos confinados no mesmo navio, apenas com breves intervalos entre as temporadas.

Gente que mora em um navio

Mas não são apenas tripulantes que passam tanto tempo a bordo de navios de cruzeiros.

Alguns passageiros, sobretudo aposentados com bons recursos financeiros, também estão fazendo o mesmo.

Alguns navios já estão até vendendo cabines permanentes, como se fossem apartamentos.

E longos cruzeiros de volta ao mundo, que duram meses, chegam a ter até lista de espera, apesar dos preços estratosféricos.

O próximo, anunciado na semana passada, acontecerá entre 2022 e 2023, terá duração de seis meses, fará escalas em 33 países, e custará a partir de R$ 350 mil por passageiro.

"Cada vez mais, aposentados bem de vida estão trocando a casa por longas temporadas em navios", diz um especialista no assunto. "Eles chegam a passar um ano inteiro a bordo, emendando um cruzeiro no outro", garante.

O recorde do gênero, no entanto, é bem maior do que isso.

15 anos sem desembarcar

Nos anos 50, a milionária americana Clara Macbeth passou 15 anos morando na mesma cabine, do mesmo navio, o luxuoso transatlântico Caronia, sem desembarcar.

Foi a primeira "residente" de um navio de cruzeiro que se tem notícia. E uma incrível "coincidência" aconteceu após a sua morte (clique aqui para conhecer esta interessante história).

"Nem mesmo tripulantes aguentam tanto tempo dentro de um navio", reconhece o especialista.

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.