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Histórias do Mar

Barco voador: o incrível veleiro que navega no ar

Jorge de Souza

16/05/2020 04h00

Foto: Amory Ross / NYYC American Magic

Barcos são feitos para navegar.

Mas, se depender dos veleiros que competirão na próxima edição da mais tradicional regata do mundo, a America's Cup, esta máxima terá que mudar.

Porque, agora, eles também podem voar.

Foto: Amory Ross / NYYC American Magic

Graças a uma espécie de par de "asas" (que mais parecem garras) nas laterais do casco, chamadas de hidrofólios, os barcos da próxima America's Cup "voarão" a cerca de dois metros da superfície, ligados à água apenas pelas pontas das tais asas tortas.

Apenas a parte inferior delas fica em contato com o mar – não o barco em si, que flutua inteiro no ar. Como um avião. Como pode ser visto neste vídeo:

Qual a vantagem disso?

A grande vantagem é o desempenho que o barco alcança.

Sem o atrito do casco com a água, a velocidade aumenta barbaramente, o que é fundamental para uma corrida de barcos — onde vence quem for o mais rápido.

A previsão é que os veleiros "alados" da próxima America's Cup consigam passar dos 100 km/h de velocidade na água, o que é impressionante para barcos que são movidos apenas pelo vento.

Foto: Amory Ross / NYYC American Magic

Nunca houve veleiros tão velozes.

Barco inteiro no ar

Hidrofólios, contudo, são nenhuma novidade.

Até grandes barcos de transporte de passageiros costumam usá-los, há tempos, para aumentar a velocidade e diminuir o consumo de combustível.

A diferença é que, no caso destes veleiros, os hidrofólios fazem bem mais do que apenas erguer a parte da frente dos cascos, a fim de diminuir o arrastro na água.

Foto: Amory Ross / NYYC American Magic

Os hidrofólios erguem o barco inteiro e o deixam totalmente suspenso no ar – uma visão que ninguém está habituado a ver.

Nem mesmo os velejadores profissionais.

"O barco decola – e voa – feito um avião de verdade", resumiu, impressionado, o americano Dan Morris, que comandará o veleiro da equipe American Magic, na próxima America's Cup, ao final do primeiro teste prático que fez com o barco, na Florida, no final do ano passado.

Mas isso tem uma explicação.

Tecnologia de aviação

Ao criarem o veleiro que usarão na competição, os projetistas do barco americano buscaram a ajuda de engenheiros da segunda maior fabricante de aviões do mundo, a Airbus, já que os hidrofólios que serão usados na próxima America's Cup estão muito próximos das asas de um avião do que de componentes habituais de um veleiro.

Têm, por exemplo, flaps, como as asas de aviões, para controlar a "altitude" da navegação – se mais alto ou mais baixo, em relação à superfície do mar.

E a função dos flaps, além de erguer o barco no ar, é estabilizá-lo durante a navegação.

As asas também atuam como substitutos da quilha, componente submerso que todo barco a vela possui, para dar sustentação ao casco e contrabalançar a inclinação gerada pela ação do vento nas velas. Os novos veleiros da America's Cup não têm quilhas.

Foto: Amory Ross / NYYC American Magic

Asas que parecem garras

Nos barcos da classe AC 75, como são chamados os veleiros que participarão da próxima America's Cup (todos iguais, mas de cinco equipes diferentes), as quilhas não existem, porque são as próprias pontas das asas que fazem esse papel, ao penetrarem no mar.

A inclinação das asas, que também são móveis, é controlada pela tripulação, em busca da melhor performance.

Foto: Amory Ross / NYYC American Magic

Estes veleiros aplicam, na prática, as leis da física. Nunca se viu nada igual.

Competição mais antiga do mundo

A America's Cup, que acontece a cada três ou quatro anos, em média, também não é uma regata como outra qualquer.

Trata-se da mais lendária, famosa e tradicional corrida de barcos à vela do planeta.

Foto: Gilles Martin Raget / Divulgação America´s Cup

A America's Cup é a mais antiga competição ainda em disputa no mundo, entre todos os esportes. Existe há mais tempo do que as Olimpíadas modernas.

Quando começou a ser disputada, em 1851, a America's Cup tinha um significado também político.

Os Estados Unidos haviam se tornado independentes da Inglaterra apenas 75 anos antes, e os americanos queriam mostrar que eram melhores que os ingleses justamente em um dos esportes mais populares entre os britânicos: o iatismo.

Para isso, construíram um veleiro, o America, e o levaram para a Inglaterra, para uma disputa contra barcos ingleses, que terminou com um resultado surpreendente (clique aqui para conhecer essa história).

Não existe segundo colocado

Consta que a própria Rainha Victoria, da Inglaterra, presente ao evento, acabaria definindo, involuntariamente, o espírito da competição, ao perguntar a um dos seus súditos qual barco havia chegado em segundo lugar.

Ao que ele respondeu que, "não havia segundo colocado, porque, naquela competição, só o vencedor importava".

Desde então, há 169 anos, a America's Cup é disputada na forma de um barco contra o outro apenas, numa série de regatas.

Será no ano que vem

Foto: Amory Ross / NYYC American Magic

Quem vence o duelo fica, temporariamente, com a taça, até que outro barco o desafie – o que irá acontecer em março do ano que vem, quando o atual detentor do título, a equipe Emirates Team New Zewland, da Nova Zelândia, irá enfrentar o barco desafiante, que sairá de uma eliminatória entre quatro veleiros, de três países, em janeiro.

Foto: Amory Ross / NYYC American Magic

Mesmo restando oito meses até lá, o barco da equipe favorita a se tornar a desafiante dos neozelandeses, o veleiro americano Defiant ("Desafiador", em inglês), da equipe American Magic, já está a bordo de um navio, a caminho da Nova Zelândia, onde será disputada a competição, em março do ano que vem.

"Queremos ser os primeiros a chegar, para treinar bastante e extravasar nossa vontade de competir com esse barco espetacular", diz o comandante do time, Dan Morris, preocupado apenas se os integrantes da equipe poderão entrar na Nova Zelândia, por conta das restrições à entrada de estrangeiros causada pela pandemia do Covid-19. "Numa escala de zero a dez, nossa equipe está com 11 de preparação e entusiasmo".

Foto: Amory Ross / NYYC American Magic

"Não é todo dia que se tem a oportunidade de navegar com um barco que, literalmente, pode voar".

 

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.