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Histórias do Mar

O barco fantasma que afundou e matou na Amazônia pode voltar a navegar

Jorge de Souza

14/04/2020 09h09

Reprodução

Um mês e meio depois ter afundado no Rio Cajari, no sul do Amapá, matando quase 40 pessoas e deixando outras supostamente desaparecidas até hoje, o barco Anna Karoline III continua produzindo cenas sinistras.

A mais recente foi no final da semana passada, quando ele finalmente chegou, macabramente desfigurado, ao porto de Santarém – destino original daquela trágica viagem. Após ter passado quase um mês submerso no fundo do rio, escondia mais cinco cadáveres, um deles o de uma criança, que só foram recuperados quando o barco foi içado.

Foto: Governo do Amapá/Divulgação

Ao chegar a Santarém, empurrado por um rebocador e sem ninguém a bordo, o Anna Karoline III mais parecia um barco fantasma, enlameado, amassado, ainda com alguns objetos (colchões, redes, etc) de seus infelizes ocupantes.

E uma pavorosa história de horror impregnada para sempre em seu casco danificado: a da madrugada de 29 de fevereiro, quando ele tombou e afundou no Rio Cajari, ao que tudo indica, por excesso de carga. Quem viu a cena da chegada do barco a Santarém ficou impressionado.

Era como se o Anna Karoline III tivesse sido desenterrado da sua sepultura no fundo do rio e voltado à vida, sem, contudo, suas vítimas.

Lado a lado com outro barco assombrado

Levado para um trapiche do porto da cidade, onde se encontra até hoje, atraindo olhares curiosos e tenebrosos, o Anna Karoline III produziu ali outra cena bizarra: foi colocado exatamente ao lado de outra embarcação com um passado ainda mais tenebroso: o fatídico Cisne Branco, que, 39 anos atrás, ainda sob o nome Sobral Santos II (que, mais tarde, seria trocado para tentar apagar seu passado), também afundou e matou mais de 300 pessoas no porto de Óbidos, no Pará, também por negligência no transporte de carga.

                                          Reprodução: ACD/Portal De Amazônia

Foi uma infeliz coincidência que trouxe novamente à tona as pavorosas lembranças do segundo mais trágico naufrágio da Amazônia (que chocou o país na época), e que terminou sem nenhuma punição aos responsáveis e com o barco voltando a navegar tempos depois, sob outro nome, na movimentada rota fluvial entre Belém e Santarém, o que acontece até hoje.

E é o que deve acontecer, também, com o Anna Karoline III, que, no passado, também teve certa ligação com o assombrado Sobral Santos II, hoje Cisne Branco.

Fotos: Reprodução

Dois barcos com o mesmo passado

O nome original do Anna Karoline III, construído em 1965, portanto há mais de meio século, era Sobral Santos, o primeiro da série, que, depois, foi alterado para Onze de Maio, mesmo nome da empresa dona do Sobral Santos II, que hoje virou Cisne Branco.

Ou seja, durante certo tempo os dois barcos pertenceram a mesma empresa.

Reprodução: Reneimix Som e Luz/Santarém

Parados, lado a lado, no porto de Santarém, o Anna Karoline III e o Cisne Branco (ex- Sobral Santos II), são como uma espécie de antes e depois das frequentes – e quase sempre impunes – tragédias fluviais amazônicas.

Ambos já afundaram e mataram. Mas isso não quer dizer que estejam inutilizados.

Pode voltar a navegar

Neste momento, após ter sido periciado pela Marinha e devolvido ao seu dono original, a Erlonave, do empresário paraense Erlon Rocha (embora, na época do afundamento, o barco estivesse sob responsabilidade do empresário Paulo Márcio Simões Queiroz, que o havia arrendado, e que era, também, o seu comandante), o barco sinistrado está sendo avaliado, visando a sua recuperação, o que é comum na Amazônia.

"Ninguém pensaria em resgatar o Titanic e colocá-lo novamente para navegar", diz um pesquisador de naufrágios da região. "Mas, na Amazônia, isso faz parte da rotina. Se alguém gastou dinheiro para tirar o barco do fundo do rio é porque ele, certamente, vai voltar a navegar".

"O Anna Karoline III deveria ser desmanchado, vendido como sucata, e o dinheiro doado às famílias das vítimas", indignou-se, numa rede social, o internauta Victor Navarro, ao saber que o barco pode ser recuperado.

"Se for para voltar a navegar e gerar mais tragédias, deveria ter sido deixado no fundo do rio, em respeito aos mortos", comentou outro internauta.

A culpa não foi do barco

Mas há quem não veja problema nisso, salvo nefastas lembranças.

"Não há nenhum problema em o barco ser reformado e voltar a navegar", defende o internauta Bruno Machado. "A culpa do naufrágio não foi do barco e sim de quem o comandava".

O comandante, no caso, é o próprio empresário Paulo Márcio. Ele ficou preso apenas dois dias, foi solto graças a um habeas corpus e, agora, aguarda o final inquérito em liberdade.

Sob ele pesam denúncias de excesso de carga transportada, o que teria alterado a estabilidade do barco, que tombou ao ser atingido por um forte vendaval.

Também está sendo investigada uma estranha parada que o barco fez no local do próprio naufrágio, supostamente para ser abastecido com combustível clandestino, levado até ele por um barqueiro da região – o mesmo que, assustado com o tombamento do barco diante dos seus olhos, teria tentado socorrer algumas vítimas, antes de fugir.

Como aconteceu o naufrágio

Uma das teorias para o naufrágio é que o fato de ter parado no meio do rio para ser reabastecido deixou o Anna Karoline III ainda mais vulnerável aos fortes ventos que sopravam naquela madrugada.

O Anna Karoline III havia partido do porto de Santana, no Amapá, no dia 28 de fevereiro, com destino a Santarém, no Pará, uma viagem prevista para durar 36 horas.

Mas naufragou na madrugada do dia seguinte, próximo à Ilha de Aruãs, no Rio Cajari, uma região de difícil acesso, a cerca de 130 quilômetros de Macapá.

O pedido de socorro foi feito pelo próprio comandante Paulo Márcio, às cinco da manhã. Mas a primeira equipe de resgate só chegou ao local no início da tarde.

Apenas 51 das estimadas mais de 90 pessoas a bordo sobreviveram. Mas, como não houve uma lista formal de passageiros, isso torna possível a existência de desaparecidos até hoje. E estes, provavelmente, jamais serão encontrados.

Barco-cemitério

Enquanto isso, o Anna Karoline III já está novamente na superfície, feito um barco cemitério, despertando calafrios em quem o vê no porto de Santarém, aguardando apenas a reforma que o fará voltar a navegar na Amazônia.

Como de hábito, apenas com outro nome.

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.