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Histórias do Mar

200 anos depois, expedição recria a polêmica descoberta da Antártica

Jorge de Souza

04/12/2019 11h24


Foto: Christian Johannes/Divulgação

Em 28 de janeiro de 1820, o capitão estoniano Fabian Gottlieb von Bellingshausen, que comandava a segunda expedição russa de circum-navegação dos mares do mundo, tornou-se, de acordo com algumas versões, o primeiro homem a avistar a Antártica, o que – acredite! – aconteceu apenas dois séculos atrás.

Hoje, à beira de completar 200 anos (o que acontecerá no final do mês que vem), a descoberta do último continente do planeta está sendo comemorada de uma maneira bem original por um grupo de 12 conterrâneos do comandante estoniano: com a reconstituição daquela viagem de descobrimento, mas a bordo de um moderno veleiro, o Admiral Bellingshausen, que acaba de passar pelo Brasil, a caminho da Antártica, onde chegará no exato dia das comemorações do bi-centenário da descoberta do Continente Gelado.

Foto: Divulgação

Passou pelo Brasil

O veleiro chegou ao Brasil no mês passado e fez escalas em Recife, no Rio de Janeiro e na cidade de Itajaí, em Santa Catarina, de onde partiu na manhã desta quinta-feira, rumo ao Uruguai.

Foto Marina Itajaí/Divulgação

De lá, os 12 estonianos descerão toda a costa argentina, como fez Bellingshausen, até chegarem à Antártica, na exata data comemorativa da descoberta – que eles não têm dúvidas de que foi feita pelo seu conterrâneo.

"O capitão Bellingshausen foi um explorador pouco conhecido fora da Europa, mas fez uma descoberta extraordinária, ao avistar, pela primeira vez, o que hoje conhecemos como Antártica", disse um dos tripulantes do barco, o estoniano Martin Lazarev, de 42 anos, que hoje vive no Rio de Janeiro, e que navegou com seus conterrâneos de lá até Itajaí. "Além de comemorar os 200 anos da descoberta da Antártica, esta viagem visa, também, divulgar o nome de Bellingshausen como um dos grandes exploradores do passado".

Fotos: Marina Itajaí/Divulgação

Em Santa Catarina, o barco estoniano passou apenas dois dias, na Marina Itajaí, mas ficou aberto para a visitação de crianças das escolas públicas do município.

"Ficamos honrados com a visita de um barco tão representativo e por fazermos parte de uma viagem tão histórica e especial", disse o diretor geral da Marina Itajaí, Carlos Oliveira, que recepcionou os estonianos na cidade.

A Estônia é um pequeno país do Norte da Europa, com apenas pouco mais de 1 milhão de habitantes, cuja história sempre esteve intimamente ligada à da Rússia, já que fez parte da extinta União Soviética.

Tanto que Bellingshausen costuma ser considerado russo, o que sempre incomodou os estonianos.

Com a reconstituição daquela histórica viagem, eles pretendem deixar claro a real nacionalidade do explorador.

Outro ponto conflituoso com os russos é o fato de que o comandante do segundo barco naquela expedição foi o russo Mihail Lazarev, a quem a Rússia passou a atribuir a descoberta da Antártica.

"Foi Bellingshausen que avistou primeiro a Antártica, depois de se separar do outro barco", explica o estoniano (já quase carioca) Martin Lazarev, que, curiosamente, tem o mesmo sobrenome do comandante russo, mas nenhuma descendência. "Sou estoniano, embora hoje tenha escolhido o Rio de Janeiro para viver", diz Martin.

Descoberta polêmica

Foto: Expedição Bellingshausen/Divulgação

A descoberta oficial da Antártica é um tema polêmico até hoje.

Além de Bellingshausen e do russo Lazarev, ela já foi atribuída ao lendário capitão inglês James Cook (que cruzou o Círculo Polar Antártico em três oportunidades, entre 1772 e 1775, sem, no entanto, avistar diretamente o continente, por conta do gelo), ao oficial da Marinha Inglesa Edward Bransfieldon, que ali chegou apenas três dias depois de Bellingshausen, e até a um humilde caçador de focas americano, chamado Nathaniel Palmer, que teria visitado um pedacinho do continente em novembro daquele mesmo ano.

Os descobridores teriam morrido?

Outra teoria prega que o primeiro barco a tocar o continente antártico teria sido uma velha nau espanhola, a San Telmo, que desapareceu com todos os seus tripulantes quando navegava no extremo sul do continente sul-americano, em 1811 – portanto, nove anos antes de Bellingshausen.

Restos do barco espanhol teriam sido encontrados, anos depois, numa baía antártica, o que, se comprovado, tornaria os tripulantes do San Telmo os verdadeiros descobridores da Antártica, embora nenhum deles tenha sobrevivido para contar o fato.

Sofridas conquistas

A conquista da Antártica também foi palco de autênticas odisseias, como a do explorador irlandês Ernest Shackleton, que teve seu barco trancado pelo gelo no inverno de 1915, quando buscava se tornar o primeiro homem a atravessar a Antártica a pé, e, para salvar a vida dos seus tripulantes, remou mais de 1 300 quilômetros no mar aberto e congelante, até a distante Georgia do Sul, em busca de ajuda.

Outra heroica aventura foi a disputa entre dois exploradores, o norueguês Roald Amundsen e o inglês Robert Falcon Scott, para ver quem chegava primeiro ao Polo Sul, em 1911.

Amundsen chegou primeiro e deixou fincada a bandeira da Noruega no exato ponto do extremo sul do planeta, para total decepção de Scott, que chegou cinco semanas depois. No caminho de volta, frustrado, o inglês acabaria morrendo no inóspito continente antártico.

Gelo sem dono

Mais tarde, em 1959, um acordo mundial, batizado de Tratado da Antártica, estabeleceu que, independentemente de quem teria sido o seu descobridor, o continente gelado não pertenceria a nenhuma nação (o que explica por que ela jamais foi da Estônia, por exemplo – ou da Argentina, que ali fez nascer, em 1978, o primeiro bebê, a fim de pleitear direitos) e sim ao mundo inteiro, abrigando apenas estações científicas de diferentes países.

Base brasileira será reinaugurada

Um dos países que atuam na Antártica é o Brasil, que ali mantém uma base, desde 1984.

Mas, sete anos atrás, um incêndio destruiu as instalações brasileiras, que precisaram ser inteiramente reconstruída.

Foto: Estúdio 41/Divulgação

Agora, a nova base brasileira será inaugurada, também no mês que vem, quando a descoberta da Antártica pelo quase desconhecido capitão estoniano Bellingshausen completará 200 anos.

Ou não, dependendo apenas da versão da História escolhida.

Sobre o autor

Jorge de Souza é jornalista há quase 40 anos. Ex-editor da revista “Náutica” e criador, entre outras, das revistas “Caminhos da Terra”, “Viagem e Turismo” e “Viaje Mais”. Autor dos livros “O Mundo É Um Barato” e “100 Lugares que Você Precisa Visitar Antes de Dizer que Conhece o Brasil”. Criou o site www.historiasdomar.com, que publica novas histórias náuticas verídicas todos os dias, fruto de intensas pesquisas -- que deram origem a seu terceiro livro, também chamado "Histórias do Mar - 200 casos verídicos de façanhas, dramas, aventuras e odisseias nos oceanos", lançado em abril de 2019.

Sobre o blog

Façanhas, aventuras, dramas e odisseias nos rios, lagos, mares e oceanos do planeta, em todos os tempos.